Das línguas livres

“Sem juízo e também sem nunca me tornar juiz”, assim se encerra o poema “Anarchy”, de John Henry Mackay, publicado em 1888. O poema foi escrito somente um ano após a sua leitura de O Único e sua propriedade, livro de Max Stirner.

Mackay, impactado pelas considerações de Stirner, na ultrapassagem da década, passa a produzir incessantemente a partir de questões libertárias e se aproxima de anarquistas como o proudhoniano editor anarquista estadunidense Benjamin Tucker.

Nos anos 1890, torna-se um dos principais colaboradores do jornal anarco-individualista, der eigene. O periódico, no início de 1930, antes da tomada do Estado pelo nazismo, transformou-se também em um espaço de publicação gay com ampla repercussão na Alemanha.

Pouco se sabe sobre a existência de Mackay, até mesmo entre anarquistas. Para além de ter sido o responsável por divulgar novamente a obra de Stirner em um momento decisivo para os anarquismos na Europa, entre o massacre da Comuna de Paris e a irrupção da chamada “propaganda pela ação”, no início do século, Mackay foi um dos primeiros militantistas a afirmar a liberação do sexo gay.

Em meados de 1900, pouco tempo depois da condenação do também anarquista Oscar Wilde, acusado de “indecência grosseira”, em um momento em que a prática do sexo gay era crime, Mackay (utilizando o pseudônimo de Sagitta) publicou inúmeros poemas sobre “o amor que não ousa dizer o nome”, como havia definido Wilde.

Perseguido duplamente, por experimentar o anarquismo e o sexo, o libertário não se calou. Enfrentou diretamente juízes, policiais que de tempos em tempos invadiam sua casa e psiquiatras como Krafft Ebing.

Mackay morreu em Berlim, em 16 de maio de 1933, dez dias depois da queima de livros por nazistas no Institut fur Sexualwissenschaft. Em 1934, outro libertário, Han Ryner, na vizinha França, disse: “várias legislações condenam o amor homossexual, que é recebido com zombaria ou severidade pela opinião pública (…). Hoje não usam mais fogueiras. Por vezes ainda se mata sorrateiramente”.

Apesar de poucas pesquisas relacionadas a Mackay, uma busca mais minuciosa no google sobre as procedências do queer indica um pouco da sua história e das singulares lutas anarquistas relacionadas à liberação do sexo.

Na década de 1930, na Europa, ainda irromperiam as Mujeres Libres; nos anos 1940 e 1950, Paul Goodman nos Estados Unidos da América; nos 1960, Daniel Guérin, após o rompimento com o marxismo. E daí em diante libertários do sexo não cessam, seja afirmando existências livres ou contestando a vida gay heteronormatizada e a criminalização da conduta gay em Estados autocratas. São tantas vidas outras, muitas delas desconhecidas, mas, intensas e vibrantes.

No Brasil, impossível não lembrar da equipe do jornal O Inimigo do Rei, que entre 1977 e 1988, simultaneamente às resistências à ditadura civil-militar, avacalhava com a direita e a suposta moral esquerdista superior propondo “Prática sexual ampla, geral e irrestrita”, ou “Você pode fumar baseado desde que não seja trotskista”.

Apesar de pouco conhecido e mencionado, Mackay teve alguns de seus poemas musicados por Richard Strauss e Arnold Schoenberg. O artista anarquista John Cage tomou aulas com Schoenberg durante um certo período. Não é possível saber se ele, por acaso, leu os poemas de Mackay. Mas, ambos nomearam ao menos uma de suas obras de Anarchy.

Cage, durante anos viveu seu amor livre com o coreógrafo Merce Cunningham. Em um célebre texto, “o futuro da música”, publicado em 1975, defendeu o que chamou de “desmilitarização da linguagem”, algo que, segundo ele, é uma prática própria de amantes.

As lutas anarquistas relacionadas à liberação do sexo são antimilitares. São também antipolíticas: não anseiam por regulamentação ou qualquer autoridade.

E, 1994, sessenta anos depois da morte de Mackay, na Alemanha, foi abolido o parágrafo 175 e a chamada homossexualidade foi retirada do Código Penal. A eliminação do parágrafo certamente foi o efeito direto de muitas lutas vitais.

Contudo, o mesmo direito, o mesmo tribunal e a mesmíssima justiça seguem condenando e destruindo, agora balizados em novos parágrafos, em reformas das palavras, em palavras-sentinelas.

Ainda vibra forte o poema de Mackay.

Fonte: Hypomnemata 256 – Boletim eletrônico mensal do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP – no. 256, maio de 2022. nu-sol.org

agência de notícias anarquistas-ana

no canto da janela
nova linha do horizonte:
o fio da aranha.

Tânia Diniz