Entrevista | “Não dá para ser antifascista e não lutar contra o capitalismo”

 

Confira a segunda parte da entrevista com Antônio Carlos de Oliveira, ex-participante do movimento punk, anarquista, professor de história e membro do Centro de Cultura Social (CCS) de São Paulo (SP) e do Núcleo de Estudos Libertários Carlo Aldegheri (NELCA).

Agência de Notícias Anarquistas > O circo eleitoral de 2022 no Brasil foi armado com muita antecipação. E nunca antes neste país vimos tantas pesquisas de intenção de voto a respeito da eleição presidencial, elas são divulgadas praticamente todos os dias. Como você vê todo este processo, essa polarização doentia, esse servilismo de boa parte da população em busca e defesa de ídolos, salvadores da pátria?

Antônio Carlos de Oliveira <Complicado responder isso. Vejamos. Não acredito que o facínora na presidência seja o único responsável pela onda de reacionarismo que se abateu sobre nós. Basta observar o perfil do eleitorado dele na eleição presidencial.

Vivencio muita solidariedade nas periferias, vejo também muito conservadorismo, em menor proporção na periferia se comparado a tal classe média e a classe dominante.

O reacionário na presidência, em parte, recebeu da esquerda institucional o palanque, na sua luta pelo poder ela não dialoga nem com os que estão próximos dela, não tem projeto de país, tem projeto para o poder. Ele foi o megafone de sentimentos conservadores de boa parte da sociedade que não viu seus desejos realizados pelos supostos salvadores da pátria anteriores.

Essa polarização tende a se agravar na medida em que o reacionário na presidência mantém suas posições ainda que apoiado “só” (?) por 30% da população. Por outro lado, os que se colocam como salvadores da pátria correm atrás do próprio rabo e não dizem a que vem. Não tem projeto de governo, mas projeto de poder. Não é de hoje que fazem alianças com os que no passado recente acusavam de corrupção etc. Saudades do Bakunin falando das alianças dos partidos políticos.

Esse servilismo, também em parte se explica, na ênfase que se dá a política somente como disputa eleitoral, algo praticado também pela esquerda institucional, que contribuiu para a diminuição do engajamento nas lutas, vide os sindicatos oficiais que, não de hoje, caíram em descrédito e desgraça pela descrença na luta cotidiana.

Ao longo dos anos isso contribuiu para diminuir a ênfase nas lutas e fortalecer a ideia do salvador da pátria, que não existe, mas que será resgatado na próxima polarização. E de polarização em polarização, adia-se o processo de tomada de consciência que só a organização não hierárquica, horizontal, autônoma, e a ação direta a partir do local de moradia, trabalho e estudo, podem transformar a realidade.

ANA > O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) lançou uma campanha de combate à desinformação nas eleições, contra as fake news, de fortalecer a democracia brasileira e… blábláblá. Porra, mas a maior fake news não é a própria eleição em si? Não é em período eleitoral (ou não) que assistimos tantas mentiras, falsidades, calúnias, hipocrisias…? E o voto ainda é obrigatório!?! (risos)

Carlos <Adoro a frase do Malatesta quando trata da “Democracia Burguesa” e diz algo assim: “a democracia é uma mentira a qual o mentiroso está um pouco preso”.

Um candidato nunca é eleito pela maioria, considerando a totalidade dos votantes é sempre pela minoria, aqui já começa a mentira.

Antes eles ainda tinham de circular pelas periferias, agora com o horário na TV e o Fundo Partidário nem isso fazem. Os contribuintes, sem serem consultados, darão 4,9 bilhões para os políticos gastarem em campanha. A pessoa paga para o político mentir para ela e ainda vota. Apesar dessa fortuna é descarado o apoio de grupos econômicos a determinados políticos. Lembremos que nas recentes reorganizações do capitalismo, chamadas de crises econômicas, a esquerda institucional socorreu banqueiro, o agronegócio e os industriais. Ganhando a eleição ele governa para quem?

Em período eleitoral é sempre a mesma coisa, se busca “fortalecer a democracia”, depois dos mais recentes casos isolados, das mortes na Vila Cruzeiro no Rio de Janeiro e da Polícia Rodoviária Federal em Sergipe, onde está o tal estado de direito? A justiça? A própria democracia? A democracia é uma mentira!

Fake News é uma constante na vida político partidária do Brasil desde a Proclamação da República, quem já viu político afirmando que ganhando a eleição aumentaria impostos? Nunca. Depois dizem “eu não sabia”. Na boa, eleitos e eleitores vão à merda!

O voto obrigatório é algo que nós deveríamos encarar de forma diferente, a ênfase no voto nulo não significa crescimento de ideias e ideais mais solidários, autônomos, horizontais, nem de organizações não partidarizadas, significa que o eleitor não gostou do salvador da pátria do momento. Penso que, sem abandonar o voto nulo, devemos investir em discussões como “A outra campanha”. Em discutir que para além de não votar é preciso se organizar, se engajar.

Enfim, em qual mentira vou acreditar???

ANA > Temos no Brasil muitos motivos pelos quais a população deveria protestar, se rebelar, principalmente o pessoal mais jovem. Contudo, o que vemos é essa campanha de artistas famosos e endinheirados, influencer e a tal esquerda institucional incentivando os jovens a tirarem o título de eleitor. É tudo surreal, não? (risos)

Carlos <A lógica é a mesma das respostas anteriores, ao invés da ênfase na necessidade de consciência, seja de classe, ambiental, etc, não se investe nem no engajamento nos partidos políticos, o que é uma merda, quiçá, nas organizações de base para as lutas cotidianas; o lance é estimular o garoto pensar que basta ele digitar os números na urna eletrônica e pronto, num passe de mágica tudo estará resolvido.

Pior, puta crise econômica, carestia de vida à mil, cresce o número de pessoas que não tem o que comer, violência institucional correndo solta, trabalhador desempregado, o sub emprego crescendo… Lembremos, a flexibilização do contrato de trabalho começou com a esquerda institucional, noutro governo dessa esquerda institucional foi aprovada a lei antiterrorista que criminaliza os movimentos sociais, ataque a mulheres, a comunidade LGBTQIAPN+, aos povos originários, aos quilombolas e suas comunidades. E o destaque desse povo todo é a discussão em eleger o salvador da pátria.

Daqui a pouco aparecem os de sempre propondo aliança com aqueles, da esquerda institucional, que poucos anos atrás publicamente defenderam ataque e perseguição aos anarquistas. Se necessário, façamos alianças, porém que seja nos locais de trabalho, moradia e estudo.

Só a organização de base que pratique a ação direta, que vivencie a autogestão, que busque o federalismo, que seja ética, que se apoie mutuamente e seja solidária poderá trazer de fato alguma transformação para essa realidade caótica. De resto, que cada qual acredite na mentira que quiser.

ANA > Como você viu o ato unificado (e esvaziado) das centrais sindicais ricas na praça Charles Miller, em São Paulo, no último 1º de maio? Um fato que chamou minha atenção e que desconhecia completamente, é que dito evento foi bancado (cachês de artistas, custos de produção) com recursos públicos por meio de emendas parlamentares, e parece que não é de hoje que tudo isso acontece. Para não dizer outro nome, é muita pelegagem, não? (risos)

 Carlos < Conheci o companheiro Railton no Centro de Cultura Social (CCS), ele mostrava fotos do envolvimento dele com a fundação da CUT (Central Única dos Trabalhadores), falava de como várias pessoas, anarquistas ou não, pensaram que poderia ser uma alternativa, mas em pouquíssimo tempo essas ilusões foram-se embora.

Era comum categorias que faziam congresso todo ano, mudar para bienal ou mais. A burocratização da estrutura administrativa, a profissionalização de parte dessa estrutura e cúpula do sindicato, esses políticos, foram se profissionalizando, depois, no sindicato ou distante da estrutura administrativa concorreram a cargos eletivos da política partidária institucional. Tivemos verdadeiras dinastias dentro dos sindicatos oficiais, o poder passando de um parente para outro. Esse pessoal depois se encastelou nas diferentes casas do legislativo ou executivo. Alguns arrumaram uma boquinha num sindicato, central sindical, ou instituição mantida pela estrutura sindical ou partidária. Enfim, se profissionalizaram na política partidária. Em alguns períodos, greves não foram realizadas porque o político no poder no momento era do mesmo partido político que o presidente do sindicato ou um apoiador, uma pelegagem absurda.

Os anarquistas a mais de 150 anos, desde a fundação da AIT (Associação Internacional dos Trabalhadores), denunciam isso, o anarcossindicalismo surgiu como alternativa concreta para a organização e luta dos trabalhadores e trabalhadoras; os anarquistas buscam se organizar também nos locais de estudo e nos bairros onde além de falar com trabalhadores de diferentes categorias falam com os desempregados, os e as trabalhadoras do lar, com os excluídos, etc.

O curioso dessa pelegagem que você cita, quando o adversário político é corrupto, é ele, quando “eu” faço é ético e está correto. Essa pelegagem e burrocracia que virou o sindicato oficial no Brasil era denunciada desde os anos 1970 pelos velhinhos e uma geração, naquele momento, mais jovem de anarcossindicalistas como o Leco, Bigode, Railton e outros.

ANA > O que você pensa deste movimento nacional chamado “Policiais Antifascismo”?

Carlos < Quero crer que possam existir pessoas que sinceramente discordem, porém a estrutura é um impeditivo. No momento da sua própria ação denunciarão abusos dos seus colegas de farda? Num momento de repressão desobedecerão às ordens e se juntarão aos trabalhadores e excluídos?

Pela leitura de jornais sabemos de infiltrados que ficaram anos participando de grupos e manifestações e depois denunciaram os que lutavam contra o sistema.

Isso nos traz a outro tema relevante, a necessidade dos grupos anarquistas de afinidades, de caráter clandestino, com número reduzido de participantes, que se conhecem bem e há tempos, o que garante mais confiança, que busquem se organizar federativamente. Não é prudente ficar tratando de temas relevantes para a organização do movimento de formas tão pública e descuidada como fazemos.

ANA > O “antifascismo” está na moda? Pergunto isso porque endinheirados como Felipe Neto, Xuxa, Annita, Fátima Bernardes e outros famosos que fazem a roda capitalista girar, que vivem uma vida de luxo em suas mansões com vários empregados ou em suas viagens em locais paradisíacos agora se dizem “antifascistas”. É possível ser “antifascista” sem combater o capitalismo? (risos)

Carlos < Porra, se esse pessoal for antifascista então fudeu. É a confusão de sempre, não dá para ser antifascista e não lutar contra o capitalismo, o racismo, o sexismo, o machismo, ser contra a heteronormatividade, a intolerância religiosa, etc.

Precisamos não esquecer onde e quando surge o fascismo, ele é uma das muitas formas de ação do capitalismo, ser capitalista e antifascista é como tentar misturar água e óleo, não rola.

Volto a insistir na necessidade de estudo, diálogos, mais proximidade nas relações pessoais, nas trocas de experiências, não se deixar levar pelas bobagens que são repetidas, replicadas, compartilhadas, curtidas e que tomam tempo para responder pelas redes sociais, tempo valioso para discussões de fato relevantes, para organização.

ANA > Mais alguma coisa? Estamos finalizando, compa, valeu!

Carlos < Primeiro parabenizar a ANA. Recordo de quando era um boletim impresso, lá se vão mais de 30 anos e contribuindo enormemente para o anarquismo e a questão social. Muita gente não sabe como é difícil manter essas iniciativas com tamanha longevidade por tanto tempo.

Acredito que já escrevi até demais, então, para finalizar, vou trazer algumas pessoas importantes para essa roda.

O grande Sergio Norte explicando que “Ação direta não significa apenas a ocupação de prédios, por exemplo, pelos sem teto. Ação direta não significa apenas manifestações contra a globalização em que você bota fogo no McDonald’s. Isso pode ser ação direta e também é! Mas não é só isso, a ação direta vai além, ela se localiza nas ações menos dramáticas (…) que são ações corriqueiras, cansativas até, de auto-organização, de gestão de espaços coletivos (…) São essas ações corriqueiras, cansativas, que requerem paciência e que devem se pautar, na minha opinião, pelo respeito aos procedimentos democráticos, devem se pautar pela busca do consenso e por um respeito DECENTE & SINCERO às opiniões diversas desse coletivo (…) É esse trabalho de ação direta que pode dar de novo um lugar para o anarquismo“.

Para esse momento tão difícil para os movimentos e organizações anarquistas ou não, o velho Martins nos lembrando que “o movimento social é como a onda do mar, vem grande, forte, avassaladora, mas tem o refluxo, a volta. Nós temos que estar junto com a onda. Não podemos estar na frente, porque não desejamos dirigir ninguém, não somos vanguarda. Também não podemos ficar atrás de ninguém, ser a retaguarda, sermos levados pela onda, temos de estar juntos“.

Para os que muitas vezes nem terminam de ler ou ouvir e já estão tecendo críticas terríveis, Jose Iraldo nos recorda que “as divergências entre libertários têm que ser cordiais. Cada militante deve ter a sua personalidade, apresentar os problemas como melhor o interpretar. Mas, disposto sempre a corrigir erros e retificar sempre que se lhe demonstrar o equívoco e a falta de razão. O não compartilhar com as opiniões dos demais, o não estar de acordo com fulano ou beltrano, não justifica tirar o corpo e não contribuir com a parte que lhe corresponde na hora de meter o ombro na obra comum“.

Quando rolava algumas divergências em nosso meio o Martins sempre falava em espanhol “somos pocos y somos malos, Pero no somos malos porque somos pocos y sí porque no percibimos que juntos seriamos mejores“.

E Anselmo Lorenzo: “vamos procurar aproximarmos mais e entendermo-nos melhor mesmo que não seja para seguir o mesmo caminho, coisa que nem sempre é possível, mas pelo menos para chegar ao mesmo tempo e o mais depressa possível ao ponto a que todos nós nos dirigimos”.

Saudações libertárias e obrigado pela oportunidade.

>> Contato: antonio@riseup.net

>> Leia a primeira parte da entrevista aqui:

https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2022/05/31/entrevista-o-punk-em-grande-medida-fez-de-mim-o-rebelde-que-sou/

agência de notícias anarquistas-ana

verdes vindo à face da luz
na beirada de cada folha
a queda de uma gota

Guimarães Rosa