Entrevista | “O verme genocida do Bolsonaro só será derrotado pelas forças das ruas e não pela porra das urnas”

“O rap trouxe-me perspectiva e uma visão crítica perante a porra do sistema que há mais de 500 anos desencadeia o massacre e genocídio dos indesejáveis sociais.” A seguir, você lê “outras rebeldias” e muito mais na entrevista que realizamos com o rapper Rodrigo Santos Andreoti, do grupo Ktarse.

Agência de Notícias Anarquistas > Com quantos anos você se interessou pelo rap? Como ele começou a fazer parte de sua vida, quais são suas lembranças…

Rodrigo Santos Andreoti < Iniciei no rap ainda criança. O rap foi o primeiro gênero musical que me cativou. Sempre fui morador de periferia e como tal, convivo cotidianamente com todas as mazelas que o Estado e o capitalismo disseminam na quebrada. Sei muito bem o que é morar numa casa precária de dois cômodos e dividindo com 6 seis pessoas. Sei o que é ter um pai alcoólatra e extremamente violento. Sei o que é sobreviver no submundo do crime e das drogas. Sei o que é odiar a escola por que a mesma não propicia um ensino de qualidade para nós do gueto. Sei o que é violência policial, a fome, o desemprego… Enfim, as letras do rap sempre dialogaram comigo de forma direta e objetiva. As letras do rap e a cultura hip hop foram meu psicólogo, que me fez perceber que tudo que há de ruim na quebrada vem de fora da quebrada. O rap trouxe-me perspectiva e uma visão crítica perante a porra do sistema que há mais de 500 anos desencadeia o massacre e genocídio dos indesejáveis sociais. Porra, mano, são várias lembranças! Dentre tantas memórias, a que carrego comigo cotidianamente é uma frase do rapper GOG, no qual em uma de suas canções ele dizia: “Não sou um gênio, não seja ingênuo, o estudo é escudo resumindo tudo”.

ANA > E começou a cantar com que idade?

Rodrigo < Comecei a cantar rap quando, na pré-adolescência, eu morava numa quebrada – fundão de Suzano (SP) – onde tinha uma equipe de som que fazia baile de Black Music e tal, eu acompanhava os ensaios deles, e nos intervalos do ensaio pegava o microfone e ficava improvisando rimas em cima dos instrumentais que eram faixas bônus contidas nos discos. Os DJ’s dessa equipe de som me incentivavam a fazer o rap, mais minha primeira apresentação foi num festival de música que teve na escola. Isso aconteceu quando eu estava na quinta série do ensino fundamental, depois dessa apresentação nunca mais parei de fazer rap, e isso há 23 anos. E estou aí na ativa até hoje, fazendo rap com a mesma intensidade de quando comecei.

ANA > E o Ktarse entra no seu caminho quando? Conte um pouquinho a história do grupo…

Rodrigo < O grupo foi formado em 2006 pelo meu parceiro Leal. Eu entrei para o grupo em 2009 e o DJ Mamona entrou para o grupo em 2020, mais todos os integrantes estão engajados na militância da cultura hip hop desde a década de 90. O Ktarse lançou em 2011 o seu primeiro álbum intitulado “Gueto Subversivo“, e o segundo álbum “Inflamando a Insurgência” em 2017, e lançamos nosso terceiro álbum “A Luta é Pela Vida” em 2021. A produção/mixagem/masterização dos álbuns foi feita de forma autônoma, “nós por nós”. As letras são de própria autoria, compostas por Rodrigo e Leal. Ktarse vem provando que o rap político e combativo, juntamente com as vivências das ruas, continua vivo e pulsante nas quebradas, já que os álbuns (Gueto SubversivoInflamando a Insurgência e A Luta é Pela Vida) estão sendo aceitos pelo público do rap, do punk, dos movimentos sociais e, inclusive, no meio acadêmico. Nossa trajetória na cultura hip hop é de militância e ativismo, seja pelo movimento negro, movimento de libertação animal, organizando e ministrando palestras sobre a questão racial, social e política em escolas, Fundação Casa, em movimentos sociais e coletivos de inspiração libertária. Nosso rap combativo vai além das rimas, pois também estamos na prática organizando junto com os de baixo a luta pela vida.

ANA > Tem alguma apresentação do Ktarse marcante, pela vibração, a energia do público? Ou algumas…

Rodrigo < Todos os espaços em que fizemos apresentação com o nosso rap combativo, sem exceção, fomos bem recebidos, com respeito e com muita carinho pela rapa que estavam ali para prestigiar nosso manifesto político da periferia cantado em cima das batidas do rap. Dentre todas as apresentações, as que ficaram mais marcantes foram as que fizemos nas Fundação Casa (prisão juvenil) de São Paulo (SP), no qual fizemos um circuito de apresentação musical e rodas de conversa com vários adolescentes, tanto da alas masculinas quanto das alas femininas, que estavam cumprindo a “tal medida socioeducativa” naquela porra de masmorras dos tempos modernos manipulado pelo governo como casa de internação de menores infratores. Enfim, pudemos conversar e cantar junto aos adolescentes que além de compartilharmos um momento de troca de ideias sobre vivenciais e saberes de quebrada, também conseguimos passar uma mensagem de protesto contra o Estado e o capitalismo através do nosso rap combativo.

ANA > O que te inspira na hora de compor um som? Aliás, é mais complicado escrever uma música ou cantá-la? Normalmente as letras das canções do Ktarse são grandes, não deve ser fácil memorizá-las… (risos)

Rodrigo < Primeiramente, minhas inspirações vem das minhas memórias e vivências de quebrada, no qual vou mesclando com as lutas, resistência e insurreições populares. Procuro ler bastante sobre a história da humanidade, e tento catalisar o termômetro da luta racial e de classes no Brasil e no mundo. Escrevo como se tivesse libertando os pensamentos, jogando pra fora todo ódio de classe que habita em mim, e depois que passo pro papel, aí é só questão de treino para decorar a letra que fica pulsante na mente, pronto pra disparar as minhas catarses contra a porra do sistema orquestrado pelos playboys, herdeiros da casa grande, filhos da puta.

ANA > Você escreveu o livro “Inflamando Pensamentos Insurgentes no Gueto“. Parou aí ou já está escrevendo o próximo? (risos)

Rodrigo < Escrevi esse livro em 2018. Na real, mano, não tinha pretensão de fazer um livro, meu intuito era de fazer um zine, porém como fui liberando meus pensamentos no papel e digitando no word e não tinha a menor ideia de quantidades de páginas escritas, e num determinado momento mostrei para um parça meu pra ver o que ele achava dos bang que eu tinha escrito e tal, aí ele me falou: “porra Rodrigo, isso é um livro e não um zine”. Enfim, após o incentivo desse truta, eu fiz o corre de forma autônoma e totalmente no “nós por nós”, assim consegui lançar meu primeiro livro.

Terminei de escrever meu segundo livro intitulado “Relatos de um rapero ateu de quebrada“. No livro escrevo alguns relatos biográficos de como falo de minha trajetória enquanto rapero e ateu de quebrada. Esse segundo livro foi feito em coletividade com outros manos, como meus parceiros Gulherme que fez a revisão, Thiago criou e ilustrou a capa do livro e a rapa da Editora Merda na Mão que fizeram a diagramação. Ainda não consegui fazer o lançamento desse livro, pois estamos tentando levantar grana para pleitear a impressão do mesmo. Se alguém tiver interesse em fortalecer esse corre é só entrar em contato com a Editora Merda e adquirir os materiais da editora, assim você torna viável a publicação dos impublicáveis, participa da cena, apoia iniciativas realmente independentes e ainda tem contato com um material extremamente diferenciado, que o fará mergulhar de cabeça no submundo da resistência e do combate.

ANA > E como entrar em contato com a editora?

Rodrigo < Pedidos e contatos através do e-mail editoramerdanamao@yahoo.com. Ou colabore com qualquer quantia no pix: 62982790215 – Diego El Khouri Sousa.

ANA > Essa postura combativa do grupo já trouxe algum problema para vocês?

Rodrigo < Então, mano, não digo que nos trouxe problemas, diria que qualquer um de quebrada que se propõem a colocar o dedo na ferida do status quo, que questiona e inflama o debate sobre as raízes do racismo, patriarcado, violência policial, fascismo, poderio clerical, Estado e capitalismo, é visto como indigesto para quem controla o poder e quem está subserviente ao mesmo. Já sofremos boicote pelas redes sociais e também recebemos uma enxurrada de mensagens e comentário de ameaça sobre algumas músicas nossas e tal, principalmente das músicas “Contos de Farda” e “Antifascistas”, mais como dizia o Facção Central: “a boca só se cala quando o tiro acerta”.

ANA > Como você avalia a cena do rap hoje no país?

Rodrigo < Não generalizo, mas a maioria dos rappers da atualidade foram cooptados pela lógica de mercado e estão subservientes a ditadura da indústria cultural. A ideologia liberal do fique rico ou morra tentando conseguiu docilizar o rap. Infelizmente a ideologia do opressor capturou a revolta, o inconformismo e o ódio de classe que outrora era pulsante no rap e transformou nossa combatividade em apenas mais um produto da indústria do entretenimento. Sou pessimista perante o cenário do rap hegemônico que domina a cena atual. Morte ao rap burguês!

ANA > E como é a cena do rap combativo no Brasil? Existe, ou ainda é uma coisa pequena? Destacaria algo, algum rapper, grupo…

Rodrigo < Os grupos de rap combativo declaradamente anticapitalista no Brasil, os quais eu conheço, são: Ameaça Vermelha, O Levante, GAS-PA, Gíria Vermelha, Fantasmas Vermelhos, Liberdade e Revolução, Infantaria Revolucionária, Clã Nordestino, Força Subversiva, Kamykazy, Raio X do Nordeste, Preta Lú, Renegados Anti-Sistema, Bandeira Negra, Armada Crítica, Reação Ideológica . Alguns desses grupos não estão mais na ativa, contudo o legado de combatividade através de suas letras contribuiu para minha formação de rapero insurgente do gueto.

ANA > E de fora do Brasil, alguma coisa te chama a atenção?

Rodrigo < Eu ouço bastante Imortal Tecniques, Vinnie Paz, Dead Prez, Onix, Dilated Peoples, RZA, Subverso, Lirika Podrida, Keny Arkana, Extasi Team Antarsia, Pablo Hasel, La Insurgencia, Porta Voz, Incognito, Valete, Chullage, Kid MC, Azagaia e Walkil.

ANA > Todos os Policiais São Bastardos (ACAB-1312), mesmo os tais “policiais antifascistas”? (risos)

Rodrigo < Não acreditem em contos de fardas, todos policiais são inimigos dos de baixo, não existe polícia antifascista.

ANA > Como você viu essa campanha puxada por artistas famosos e a tal esquerda institucional incentivando os jovens a tirarem o título de eleitor?

Rodrigo < Artistas midiáticos são celebridades e celebridades não tem compromisso com a luta popular. Seus compromissos são com o sistema que pagam seus cachês. Quem paga a banda escolhe a música, né? Como já bem dizia o subcomandante Marcos: “a esquerda institucional não passa de uma direita envergonhada”.

ANA > E na sua avaliação, o que mais colabora para a passividade, o conformismo do povo, os sindicatos pelegos, os partidos da esquerda institucional, as igrejas, a indústria do entretenimento…?

Rodrigo < Difícil mensurar qual dessas instituições está mais cristalizada pela ideologia do opressor. Vejo que todas essas instituições estão cumprindo muito bem o papel de fazer a lavagem cerebral da população, no qual, o fascismo se retroalimenta cotidianamente. Na minha concepção, é impossível humanizar a tirania e o terror, então, o que resta para nós, os de baixo, são a insurgência e rebelião para que possamos nos emancipar enquanto classe. E os desafios é inflamar as ruas com a revolta popular, revolta essa que deve ser direcionada contra essas instituições cristalizadas pelo fascismo atual.

ANA > Ainda falando de conformismo, submissão, paciência… Meu, com tanta miséria, opressão, alto custo de vida, aumento geral dos preços, barbárie institucionalizada, por que não vemos protestos de rua vigorosos pelo país? Revolta? Não era para o Brasil tá pegando fogo? Ou todo sentimento de revolta popular está sendo canalizado para o voto, para as eleições presidenciais? Aliás, na última Virada Cultural de São Paulo, segundo relatos, muitos artistas puxaram gritos de “olé, Lula”, pediram para o público fazer o “L” com as mãos… Puxaram o mantra “fora, Bolsonaro”… (risos)

Rodrigo < O verme genocida do Bolsonaro só será derrotado pelas forças das ruas e não pela porra das urnas. Mas enquanto tivermos uma esquerda eleitoreira, viciada em querer gerenciar a máquina do Estado e as instituições burguesas, a porra do fascismo continuará fodendo com o povo de forma frenética. Em relação aos artistas pop com suas futilidades do mainstream, mano, no resumo vejo que para a luta dos de baixo celebridades é desserviço!

ANA > Você poderia falar um pouquinho da Frente Anarquista da Periferia (FAP)?

Rodrigo < A FAP surgiu em meados de junho de 2020 em meio à turbulência da pandemia da Covid-19, no intuito de criar laços de união e solidariedade junto com as quebradas, fortalecendo as e os lutadores que estavam atuando nas comunidades e levando apoio mútuo na distribuição de cesta básica e demais itens de higiene e etc aos mais fragilizados da sociedade que necessitavam dessa solidariedade naquele momento. Hoje a FAP vem ganhando força em algumas quebradas de São Paulo (SP), e sua atuação está remetida em diversas ações de luta e solidariedade nas comunidades e sendo impulsionada pelos nossos parceiros e parceiras de quebrada e de luta, no qual nós do Ktarse temos total afinidades, do fundão da Zona Sul de SP. A FAP também atua na tentativa de unir os anarquistas numa frente de luta comum, respeitando toda diversidade que há no anarquismo, propondo a construção de um programa de apoio mútuo no intuito de somar e aglutinar forças com quem se organiza de forma horizontal e autônoma nas comunidades de SP.

ANA > Agora um ping-pongue, curto e grosso… (risos)

Rodrigo < Mumia Abu-Jamal: Guerreiro sagaz do gueto, ser humano implacável.

Lula: Bombeiro de classes.

Annita: Nada a declarar.

Keny Arkana: Exemplo a ser seguida por quem se propõem a fazer rap de luta contra o Estado e o capitalismo.

Mano Brown: Um sábio da periferia que infelizmente se adaptou a casa grande.

Bakunin: Ódio, revolta e indignação aos de cima e ao mesmo tempo amor, emancipação e sabedoria aos de baixo.

Ludmilla: Não me identifico.

Emma Goldman: A mulher mais perigosa do Século XX.

Bolsonaro: A tampa do bueiro aberta.

Lima Barreto: Preciso estudar com a mesma intensidade que estudo Malcolm X.

ANA > Para terminar, o Ktarse está preparando um novo álbum, ou seja, mais um brado de revolta contra a opressão? (risos)

Rodrigo < Então, mano, como lançamos há pouco tempo, em novembro de 2021, o terceiro álbum do Ktarse (A Luta é Pela Vida), ainda estamos potencializando as músicas desse álbum, seja através de vídeo clipes e vídeo lyrics que aos poucos estamos produzindo e subindo pelo nosso canal ( https://www.youtube.com/user/Ktarse). Como somos um grupo de rap que produzimos nossas músicas de forma autônoma e independente, nem temos vínculos com empresas ou produtoras, e não fazemos diálogos com capitalistas e os barões da indústria musical, então o nosso processo de produção musical não flerta com o tempo momentâneo e líquido da indústria cultural. Aos poucos vamos escrevendo, produzindo e gravando. Mas já temos algumas novidades, principalmente em termos de participação com outros músicos e rappers combativos, e logo mais estaremos lançando esses sons novos pelas redes sociais.

ANA > Algum toque final? Valeu e vamos “botar fogo no inferno!”

Rodrigo < Agradeço pelo espaço mano, pois o rap combativo muitas vezes é boicotado até pelas mídias que se dizem alternativas. Porém, vocês têm total respeito e admiração do Ktarse. E muito obrigado por estarem sempre divulgando nossos sons e fortalecendo o rap combativo, anticapitalista e libertário!

Estamos em combate, em movimentos de ruptura / Somos um povo forte de resistência e luta / Inflamando a insurgência contra os de cima / ‘Lutar contra o sistema é luta pela vida’

Contato: rapperrodrigo@gmail.com

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