Opinião | O anarquismo antivacina

Por B. | 14/09/2022

Em 17 de Novembro de 2021, a Agência de Notícias Anarquistas publicou um artigo chamado “A Cena Libertária Virou Um Campo de Cordeirinhas Vacinadas” [1]. O texto acusa feiras “anarquistas” e “punks” (entre aspas no texto original) que ocorreram durante a pandemia, como a XI Feira Anarquista de São Paulo (que ocorreu dias antes da publicação) de não colocarem em discussão as políticas de passaporte sanitário, que tinham como objetivo diminuir o alcance de contágio do vírus COVID. Viagens de longa distância são o principal vetor de contaminação de vírus desse tipo. Ainda assim, o artigo trata tais medidas como “mecanismos de controle do Estado” para redução da liberdade individual de opinião e de ir e vir, ignorando sua efetividade em salvar vidas. Não se trata de uma questão de opinião ou da liberdade de ir e vir, mas antes de tudo do valor da vida humana e do conhecimento científico. Embora possam negar, as pessoas que redigiram este artigo estavam reproduzindo argumentos criados por teóricos da conspiração, e foram muito pouco criticados por isso.

A COVID-19 causou mais de 600 mil mortes no Brasil até agora, e hoje sabemos que esse número poderia ser muito maior caso as medidas sanitárias tivessem sido ainda mais ignoradas. Ao invés de apontar alternativas que não envolvam colocar a vida de pessoas em risco desnecessário, as pessoas que redigiram o artigo escolheram um discurso sensacionalista, atacando pessoas e organizações anarquistas que defendem medidas sanitárias como usar máscaras e evitar aglomerações, dizendo que “não passam de cordeirinhas mansas”.

Podemos entender melhor o contexto ao comparar as escolhas de organização de dois eventos anarquistas que ocorreram em novembro de 2021 no Brasil: a XI Feira Anarquista de São Paulo e a X Feira do Livro Anarquista de Porto Alegre. A feira ocorrida em São Paulo decidiu não promover encontros presenciais, enquanto na feira de Porto Alegre as pessoas responsáveis pela organização sequer usaram máscaras. Por mais que a ausência de uma feira presencial em São Paulo tenha prejudicado o repasse de material físico, é preciso compreender a gravidade da situação e a escolha de não realizar eventos presenciais. É importante notar também que em Porto Alegre, a feira anarquista foi organizada por um grupo de pessoas diferente das outras edições, e foi consideravelmente menor.

A acusação de que cancelar eventos presenciais seria “peleguismo” ou discurso “eleitoreiro” é desonesta e descabida. A suposta postura “realmente radicalmente questionadora e ameaçadora da dominação e exploração político-econômica do sistema” se aproxima na verdade de uma postura conservadora. Com o benefício do tempo, podemos julgar com melhor precisão que, apesar dos discursos sobre o “acirramento do avanço das táticas de dominação pelo biopoder” que vem de “grandes laboratórios de tecnologia farmacológica”, o texto reproduz discursos antivacina que foram usados por conservadores e liberais. Isso demonstra a necessidade de um debate sobre negacionismo científico no meio anarquista.

Essa preocupação não é exclusividade do Brasil. Ao redor do mundo, anarquistas publicaram textos com acusações semelhantes, assim como respostas criticando as ideias negacionistas, conspiracionistas e “anti-lockdown” dentro do movimento anarquista. Uma dessas respostas foi publicada na Montreal Counter-info [2]. Embora concordem que “A crise do Covid19 apresentou um desafio para anarquistas”, que políticos mentem sobre o vírus e que a indústria farmacêutica se aproveitou da pandemia, a concordância acaba por aí:

“No Reino Unido, fomos informados de que o vírus era apenas uma gripe e para continuar trabalhando como de costume (No momento em que escrevo, a contagem de mortes é superior a 125.000). E fomos informados da vacina de Oxford, uma vacina do povo sem patente ou fronteiras (uma máscara que rapidamente caiu quando o Estado voltou ao nacionalismo da vacina). Mas essas não são as mentiras que eles têm em mente. Em vez disso, eles argumentam que os políticos e a mídia exageraram astutamente a ameaça do vírus, em um plano astuto para impor bloqueios e obter lucros farmacêuticos. (Certamente as corporações de desinfetantes para as mãos também estão por trás disso…?) Os anarquistas, nos dizem, acreditaram nessa mentira poderosa.”

A crença sobre uma conspiração do governo e da indústria farmacêutica para enganar a população a aceitar as medidas sanitárias como uso de máscaras, bloqueios e vacinas é, podemos afirmar com mais segurança agora, uma teoria da conspiração muito mais preocupante. A necessidade dessas medidas foi comprovada, e elas seguiram APESAR de uma notável falta de colaboração tanto de governos autoritários quanto de empresários da indústria farmacêutica. Não houve um aprofundamento significativo do “biopoder”, como alguns temiam, por conta dessas medidas. Antes, o controle da pandemia contou com iniciativas de apoio mútuo, ação direta e cooperação comunitária.

A situação foi e continua sendo explorada pelo capitalismo e pelo Estado, porém é preciso lembrar que o capitalismo, assim como o fascismo, cria corpos descartáveis às margens do sistema produtivo: “corpos velhos, corpos menos ou improdutivos, corpos que não podem ‘trabalhar'”. O capitalismo e o Estado também têm interesse em políticas de eugenia, e a pandemia serve a esse propósito.

“Reconhecer a pandemia como uma ameaça existencial é onde ‘nossa conversa deve começar’. (…) É o anarquista que é sujeito-agente aqui [na crítica], sua liberdade de agir com ou sem eles (os ‘vulneráveis’) em mente. Apaga desde o início os anarquistas idosos e vulneráveis. Onde estão eles e suas liberdades nessa revolta imaginada? (…) Não encontraremos liberdade em necrotérios.”

Portanto, não se trata de um acovardamento do movimento anarquista, como o texto acusou, mas de uma questão de princípios antifascistas. O “perigo do avanço das práticas totalitárias” não foi ignorado nem deixado de lado nas decisões que levaram a seguir as medidas sanitárias. Não cabe falar de “liberdade de expressão” e censura “contra toda e qualquer informação que questiona o discurso autorizado sobre a pandemia” sem levar em consideração a ameaça real à vida das pessoas. Esse descaso com o valor da vida humana também está presente nos discursos tanto da direita quanto da esquerda, seja no campo conservador, no liberal ou social-democrata.

Como podemos comprovar agora, não houve censura aos antivacina. A própria existência dessa publicação na ANA é evidência disso. Mas o movimento anarquista precisa questionar a reprodução de discursos rasos e sensacionalistas como esse. Essa é uma tendência global, como se pode ver no texto publicado na Montreal Counter-info:

“Finalmente, nosso amigo ataca a tirania do confinamento, alegando que, como anarquistas, esse deve ser o nosso objetivo, e que, ao não fazê-lo, cedemos covardemente à extrema-direita. Mas seu alvo é abstrato e confuso. Eles usam os termos toque de recolher, bloqueio e fechamento de forma intercambiável (um de seus artigos citados até descreve o uso obrigatório de máscara como ‘draconiano’!) e argumentam que essas medidas devem ser atacadas ‘em princípio”, pois são impostas sem “consentimento’. Argumentamos que, como anarquistas, não há Estado com o qual se possa consentir, e que a própria noção de contrato social não tem nada a ver com a anarquia. Em vez de fazer declarações vagas pela liberdade no estilo do Tea Party, devemos localizar e atacar os instrumentos de poder e controle. (…) À medida que as pandemias se tornam mais prevalentes e os ecofascismos entram no mainstream, os anarquistas devem lutar para garantir que ninguém seja ‘deixado para trás’.”

Os fatos que ocorreram desde a publicação dessa análise na ANA em novembro do ano passado demonstraram o quanto a publicação “envelheceu mal”. Acusaram anarquistas de negociar com “o princípio da liberdade”, sem perceber que estavam negociando vidas humanas. Os regimes autoritários defenderam abertamente o discurso da ‘imunidade de rebanho’ sem vacina. Isso se mostrou benéfico à estratégia necropolítica, o que a crítica às “cordeirinhas vacinadas” ignorou por completo. Sem contar o conservadorismo disfarçado na figura de linguagem que compara anarquistas que tomaram vacina ao movimento da bunda de uma funkeira…

É preciso conhecer melhor o inimigo. “Liberdade de expressão” para reproduzir oposição cega a tudo que vem do Estado não é coragem, é tão estúpido quanto se juntar a qualquer protesto contra o governo, mesmo que seja, por exemplo, para aprovar uma reforma trabalhista que prejudica ainda mais as trabalhadoras pobres. Estamos num tempo em que reacionários também confrontam a polícia e neonazistas também marcham contra decisões do governo que contrariam as suas “liberdades individuais”.

No Brasil, a Revolta da Vacina, que ocorreu no Rio de Janeiro em novembro de 1904, foi um protesto contra a obrigatoriedade da vacinação contra a varíola que acabou tomando uma proporção política inesperada. O populismo no Brasil se beneficia com essa associação simbólica entre revolta popular e ceticismo quanto à vacinação.

É preciso lembrar também que o discurso antivacina está historicamente relacionado ao antissemitismo. Temos como exemplo emblemático a história do francês Paul Rassinier, que após ser expulso da Internacional Socialista, nos anos 20, aproximou-se ao mesmo tempo dos anarquistas franceses e de “ex-nazistas” como Johann von Leers, que trabalhou com Goebbels no Ministério da Propaganda do III Reich e fundou um partido fascista na Argentina. O discurso anti-semita do pós-guerra procurou associar as oligarquias capitalistas ao sionismo. Hoje, o discurso antissemita é combinado ao anti-intelectualismo fascista, o que é visível no discurso conservador que demoniza George Soros, mas exalta Elon Musk.

Por outro lado, o famoso filósofo antifascista Giorgio Agamben [3] declarou que os bloqueios criados para conter a COVID “se pareciam muito com a Alemanha nazista”. Em “A invenção de uma epidemia”, ele chamou a reação ao vírus de “frenética, irracional e totalmente infundada”, acusa as autoridades de enganar intencionalmente o público sobre a ameaça do COVID-19 e também a comparou a uma gripe comum.

Este discurso fortaleceu a resistência às medidas sanitárias, tratando-as como se fossem apenas um plano para cercear as liberdades individuais. O que une o discurso de Agamben  ao discurso de certos fascistas é o seu antimarxismo exagerado. Se qualquer ação do estado, mesmo em emergências sanitárias, deve ser recusada por ser intrinsecamente opressiva, e nenhuma alternativa concreta é apontada, a tendência é que o discurso individualista neoliberal se fortaleça. O episódio demonstra como colocar qualquer coisa acima de todas as coisas se aproxima do fascismo, até mesmo a crítica ao estado.

“No caso de Agamben, a desconfiança excessiva de qualquer autoridade estatal o cegou para as maneiras pelas quais as abordagens individualistas da pandemia reforçaram o poder corporativo enquanto exacerbavam a pandemia. Os chamados trabalhadores essenciais, junto com tantos outros, foram reduzidos a uma vida nua descartável, não por intervenção direta do estado, mas por políticas que pretendem libertá-los.”

O movimento antivacina dos EUA [4] se tornou “fortemente associado ao pensamento conspiratório e à proteção das liberdades individuais, características que estão encontrando um lar entre os grupos de extrema-direita”. No Brasil [5], de modo muito semelhante, a Covid-19 aprofundou a disputa política entre discursos negacionistas e científicos. O discurso negacionista foi defendido por autoridades do governo federal, grandes empresários, lideranças religiosas, e pela nova mídia digital. “Este discurso minimiza ou não reconhece a amplitude e importância da pandemia. Privilegiando a sustentabilidade da economia, incentiva a volta ao trabalho e o fim das medidas restritivas de quarentena horizontal e de lockdown”.

O discurso científico foi defendido por pessoas da área da saúde e organizações internacionais, governadores estaduais (que são responsáveis pelos hospitais) e alguns governos estrangeiros. “Por sua vez, este discurso privilegia o cuidado da saúde e a sustentabilidade da vida, defendendo o isolamento social com a quarentena horizontal e até lockdown como melhor forma de garantir a vida e, também, o êxito futuro em termos de sustentabilidade econômica”.

De modo geral, apoiadores do governo no Brasil e nos EUA, assim como líderes evangélicos, culparam os “comunistas” por criarem uma preocupação desproporcional em relação à COVID, enquanto defendiam o direito individual de não se vacinar e não usar máscaras. O discurso de alguns grupos anarquistas pode se relacionar a esse discurso por duas vias: pelo anticomunismo herdado da experiência com o regime soviético e pelo individualismo exacerbado de algumas tendências anarquistas. Isso pode ser evidenciado na ideia de que o vírus é Chinês, o que associou a crítica às medidas sanitárias da OMS com a crítica às medidas restritivas adotadas pela República Popular da China, governada pelo Partido Comunista Chinês.

Em oposição às medidas da OMS, o discurso negacionista ganha contornos nacionalistas com a acusação de imperialismo sendo usada como justificação para o descaso com a vacina e medidas preventivas. O antagonismo com as mídias tradicionais fortalece “fluxos informacionais customizados, proprietários e diretos”, onde a autoridade científica reconhecida por pares é trocada pela autoridade descentralizada de pequenos influenciadores em suas redes sociais, o que facilita a reprodução de notícias falsas e desinformação. Segundo uma matéria do Jornal da USP [6]:

“A negligência no combate à pandemia, a negação das vacinas e a insistência na promoção de tratamentos comprovadamente ineficazes contra a covid-19 suscitaram um verdadeiro levante de pesquisadores e entidades científicas contra a praga da desinformação que se alastra com consequências cada vez mais nefastas pelas mídias digitais. Na ausência de uma campanha oficial de esclarecimento e incentivo à vacinação por parte das autoridades, diversas universidades, organizações e entidades médico-científicos lançaram campanhas próprias sobre o tema nesta semana — num embate semelhante ao que já vem sendo travado desde 2019 na área ambiental, frente à negação sistemática de dados científicos sobre desmatamento e queimadas por parte do governo federal”.

Anarquistas precisam questionar a quem a ciência hegemônica serve, mas também a quem interessa o discurso negacionista. Ao contrário do que se propagou, as vacinas são seguras e salvam vidas, e quem diz isso não é um oligopólio farmacêutico mas sim trabalhadoras e pesquisadoras da área de saúde, que não ganharam nada com isso e não podem ser tratadas como “ingênuas”.

O aumento do fluxo de informação possibilitado pela internet esconde um perigo maior que o poder da indústria farmacêutica. Segundo a educadora anarquista Rhiannon Firth [7]: “Enquanto as teorias da conspiração sobre o vírus são abundantes, os teóricos do capitalismo de desastres, o mais famoso Klein (2007), mostram como não precisamos pensar que os desastres são feitos pelo homem por meio de uma conspiração para entender que sociopatas poderosos mobilizarão o medo, o pânico e momentânea falta de escrutínio em seus próprios interesses”.

Como alternativa ao anarquismo antivacina, podemos citar a profusão de medidas de apoio mútuo que surgiram durante a pandemia, como a criação e fortalecimento de ocupações; o incentivo a greves de trabalho e de aluguéis; apoio a refugiados e diversas ações diretas.

Nathan Jun e Mark Lance [8] também apontaram para a importância de estratégias anarquistas no enfrentamento da pandemia:

“Anarquistas abraçam não apenas a liberdade negativa – uma ausência de coerção – mas um tipo rico e substantivo de liberdade positiva. (…) Diante de um desastre tão devastador e repentino, há desvantagens óbvias em deixar a resposta para a organização espontânea de redes de base local. Uma resposta governamental significativa teria uma capacidade muito maior de atender às necessidades humanas e controlar comportamentos anti-sociais perigosos – não apenas se reunir em desacordo com os conselhos de saúde pública, mas coisas como especulação, abandono dos economicamente mais vulneráveis etc. (…) Mas em termos de sua capacidade de construir capacidade e nos mostrar novas maneiras não individualistas e não competitivas de estar juntos, elas são muito superiores a um governo competente. (…) Essas ações nos ensinam novas maneiras de ser – maneiras que o capitalismo e o sistema de saúde capitalista escondem sistematicamente”.

Essa potencialidade transformadora é perdida em conflitos desnecessários dentro do movimento anarquista, onde acusações rasas tomam o lugar de debates honestos. Nós também precisamos de redes de formação e informação científica de qualidade, ou então ficaremos reféns de teorias da conspiração e discursos sem criticidade, o que necessariamente implica em perda de autonomia.

[1] https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2021/11/17/a-cena-libertaria-virou-um-campo-de-cordeirinhas-vacinadas/

[2] https://mtlcounterinfo.org/anarchy-lockdown-and-crypto-eugenics-a-critical-response-from-some-anarchists-in-wales-england/

[3] https://slate.com/human-interest/2022/02/giorgio-agamben-covid-holocaust-comparison-right-wing-protest.html

[4] https://www.mcgill.ca/oss/article/covid-19-pseudoscience/anti-vaccine-movement-2020

[5] https://diplomatique.org.br/uma-gripezinha-a-analise-politica-do-discurso-negacionista/

[6] https://jornal.usp.br/ciencias/a-ciencia-contra-o-negacionismo/

[7] https://theanarchistlibrary.org/library/rhiannon-firth-mutual-aid-anarchist-preparedness-and-covid-19

agência de notícias anarquistas-ana

Ameixeiras brancas —
Assim a alva rompe as trevas
deste dia em diante.

Hori Bakusui