Parte I | Vença Quem Vencer, As Ganhadoras Serão As Mesmas: Um Posicionamento Ácrata Sobre As Eleições Presidenciais de 2022

Por V4N0L1 | 26/09/2022

Esquerda ou Direita: A Questão

Um jovem colega de trabalho identificado com a esquerda me perguntou sobre quem eu acho que irá ganhar a eleição presidencial de 2022: respondi que, em minha concepção, no que tange ao que considero como sendo as questões fundamentais, vença quem vencer, as ganhadoras serão as mesmas. Mas isto, após ter fundamentado longamente meu ponto de vista, segundo uma linha de análise que passo a reproduzir aqui em linhas gerais.

Esquerda X Direita: Uma Experiência Internacional Recente

Estudei na Europa em meados dos anos dez e, na França, onde morei, pude verificar in loco os rumos tomados pelo então governo de esquerda (em tempo: neste texto tratamos da esquerda dita “social democrática”, obviamente) do ex presidente François Hollande (o “companheiro Hollande”, assim chamado pelos ex presidentes do Brasil, Lula e Dilma, pelo fato de integrarem o mesmo espectro político “progressista”). François Hollande foi eleito em disputa com representantes da direita francesa, como uma contraposição ao conservadorismo.

A despeito do alijamento da direita da cena do poder executivo, foi no período do governo Hollande que se fez reformas trabalhista e da previdência (ambas propostas pelo próprio presidente) de cunho neoliberal – posto que a primeira “flexibilizou” as relações de trabalho (leia-se: precarizou), como o neoliberalismo tanto advoga; enquanto a segunda imprimiu uma carga de sacrifícios maiores para os trabalhadores como condição para acenderem à aposentadoria -, a tal ponto que o processo de discussão e aprovação destas reformas foi marcado por uma série de grandes protestos populares nas ruas de Paris em rechaço à sua proposição (protestos estes que foram duramente reprimidos pelas forças governamentais).

Foi ainda durante o governo Hollande que se reativou, após os atentados de treze de novembro de dois mil e quinze, um mecanismo legal instituído durante a guerra de descolonização da Argélia que é próprio de um regime de exceção, L’état d’urgence (“O Estado de Urgência”). Esse mecanismo, além de franquear a ocupação das ruas por forças militares, permite que se suspendam sumariamente direitos constitucionalmente garantidos de cidadãos que possam em algum momento cair sob suspeição das autoridades policiais, desencadeando a partir daí a eclosão de relatos na imprensa sobre residências de cidadãos de ascendência árabe (em geral, jovens) sendo invadidas por equipes policiais sem mandado judicial, e seus ocupantes sendo enviados sumariamente para penitenciárias de segurança máxima sem nenhum julgamento e/ou averiguação judicial preliminar mais criteriosa das suspeitas policiais pairando sobre eles: como se pode deduzir de todo este contexto, não faltaram relatos de práticas de tortura psicológica e de destruição intencional de patrimônio praticadas contra os cidadãos atingidos pela onda de “revanchismo” policial fascista e xenófoba que escalou a partir daí contra a comunidade árabe.

E mesmo sob críticas generalizadas, entre elas, inclusive, muitas oriundas de grupos de pesquisadores do tema do que se passou a ser visto como um “novo terrorismo islâmico” – caracterizado pela adesão maior de jovens de ascendência árabe mas nascidos e educados na França, aliciados via internet e que, até o momento de seu aliciamento, surpreendentemente, não eram adeptos do islamismo – e de educadores de centros estatais de cultura da juventude em bairros de imigrantes – críticas estas que apontavam para a responsabilidade histórica do sistema francês no fenômeno do sentimento de exclusão que estaria por trás da revolta desta parcela da juventude descendente de imigrantes que viria tendo estes sentimentos “capturados” por organizações terroristas para direcioná-los para seus fins de extremismo religioso o que, consequentemente, não seria revertido simplesmente pela mera abordagem repressora, a qual só apontaria para o descomprometimento do establishment para com uma abordagem mais profunda da questão -, ainda assim, o governo Hollande tencionou tornar “O Estado de Urgência” um mecanismo perenizado pela constituição.

Ainda sob o governo Hollande desenrolou-se um longo e grave embate entre o Estado (mais especificamente o governo central) e grupos civis contra culturais àcratas em defesa do meio ambiente, embate este configurado em torno da questão de Notre Dame des Landes: tratou-se aí de um ato de resgate por parte do governo Hollande de um projeto de uma mega obra de engenharia proposto em governos anteriores mas ainda não iniciado até então por motivos do seu caráter altamente delicado tanto em termos sociais quanto ambientais, qual seja: a construção sobre o território de uma vasta área verde com status de reserva ambiental – situada em Notre Dame des Landes – de uma mega estrutura que deveria vir a ser o maior aeroporto da Europa. 

Conforme já antecipei, esse verdadeiro ato de uma agressão ambiental e social de dimensões escandalosas, “justificado” pelo governo em nome do desenvolvimento econômico da nação (“pra variar”), desencadeou um vigoroso movimento de reação da parte de diversos grupos da sociedade civil com caracteres de movimentos contra culturais ácratas em defesa do meio ambiente. O longo embate que se desenrolou a partir daí tomou rumos dramáticos, posto que os aludidos grupos contra culturais e ecologistas se estabeleceram na floresta ameaçada, passando a habitar a área para barrarem in loco a devastação planejada pelo governo (eu conheci pessoalmente o prédio de uma grande ocupação urbana em Paris – passei uma noite lá, a “Transfo”, onde se fabricava artesanalmente, com materiais ecológicos, equipamentos de geração de energia eólica que eram enviados de caminhão até Notre Dames des Landes para viabilizar a permanência da resistência ali, assim como produziam também – a okupa – adereços para os atos públicos de protestos que a resistência realizava nas comunidades agrícolas da região). Seguiu-se daí uma série de confrontos físicos ocorridos no meio da mata, entre equipes policiais de choque e a resistência civil, confrontos estes que, como era de se esperar, resultaram em vários prejuízos em termos de perdas e danos a várias pessoas neles envolvidas. Após vários destes confrontos, percebendo que não estava obtendo êxito e, ainda por cima, estava perdendo também a batalha pela opinião pública (as pesquisas demonstravam que a maioria da população local se posicionava contrária ao projeto de construção do mega aeroporto, pois sabiam que a obra iria arruinar a economia tradicional das suas comunidades), o governo decidiu mudar de estratégia, cooptando dirigentes de associações representativas de agricultores locais e empreendendo uma consulta pública em nível nacional (afinal, em se tratando dos cidadãos que não residiam em Notre Dame des Landes, como diz o ditado, “o que os olhos não vêem, o coração não sente”: o que as empresas de comunicação não fazem com dinheiro público?). Neste ponto, é preciso dizer que até mesmo do ponto de vista estritamente técnico, de engenharia, o projeto do mega aeroporto tinha sido seriamente questionado por muitos especialistas da área, que afirmavam que a relação custo/benefício da obra levava a concluir que a mesma não valia a pena, posto que a mesma capacidade de trânsito que ela iria oferecer poderia ser obtida a custos muito menores pela simples ampliação do aeroporto Charles de Gaulle.         

Valendo-se destes estratagemas de manipulações desleais, o governo logrou construir o artifício de um alegado apoio da opinião pública ao projeto do mega aeroporto, legitimando a partir disto uma ação de fôlego inédito para expulsar a resistência para fora da floresta. Porém, ante à disposição da resistência em continuar levando adiante as denúncias contra o caráter eco-sociocida do projeto, o governo decidiu suspender o início das obras.

Seria necessário ainda responder à pergunta “a quem interessaria a construção do mega aeroporto de Notre Dames des Landes? Seria?

Continuará…

agência de notícias anarquistas-ana

Olha o velho lago –
Após o salto da rã
O barulho da água.

Bashô