por Sergio Giménez | 05/11/2018
Desde um povoado maiorquino ao pé da Serra de Tramuntana, um medievalista, doutor e professor de História, realiza um tenaz trabalho de edição de livros e revistas relacionados com o mundo libertário. Seu nome é Jordi Maíz Chacón (Cabra, 1977), e acaba de publicar El Otoño de Kropotkin. Entre guerras e revoluciones (1905-1921)(La Malatesta Ediciones, 2018).
Ser Histórico > Para que saibas do tipo de entrevista, continua sendo válido aquilo de divulgar para formar individualidades, tirar zeros ao monte para convertê-los em unidades?
Jordi Maíz < Sinceramente, eu não sou de tirar nem de converter nada em unidades. Faz anos que venho trabalhando ou dedicando parte de meu tempo existencial à composição, correção, edição e distribuição de material sensível de difundir os movimentos e práticas antiautoritárias em qualquer de suas vertentes. Não tenho intenção de formar ninguém, pois nem sou exemplo, nem estou em condições mais do que de tratar de desconstruir meu próprio ser, o que não é pouco.
S.H. > Conte-nos o que é Calumnia e como nasce o projeto.
J.M. < Calumnia é um projeto autogestionado de difusão de textos, debates, jornadas ou materiais que de uma forma ou outra nos ajudem a escapar, ainda que seja momentaneamente, do capitalismo e do individualismo selvagem no qual nos encontramos submergidos, ou talvez afogados.
O projeto, em certa medida, é continuador de outras iniciativas nas quais me vi envolvido. Desde meus anos juvenis, daquilo que se chama ensino obrigatório e post-obrigatório, venho participando da autoedição de poemários, fanzines e folhetos da órbita do que se chamou DIY (faça você mesmo). Vamos, que andava daqui para lá entre fotocópias e grampeadores para ocupar aquilo que se chamava tempo livre. O que no início era um escape, logo se converteu em uma necessidade.
S.H. > Mas já mudou muito desde então, não acha?
J. M. < Assim é. Passei muitos anos entre grampos, e ainda o faço. Com o tempo, aprendi que as minhas necessidades de elaborar estes materiais eram compartilhadas por outras compas e daí surgiram projetos de edição menos fanzineiros como Insomnus (tristemente suicidado) ou o grupo de estudos libertários Els Oblidats. Agora que o penso, Calumnia talvez seja uma simbiose entre esses anteriores projetos. E nasce da necessidade de compartilhar textos entre amigas e amigos com certas afinidades políticas, da necessidade de esvaziar nossas gavetas cheias de rascunhos, artigos inconclusos e outras reflexões ou da necessidade de tirar da cabeça coisas que nos ocupam demasiado espaço.
Mais tarde se uniram – e também outras se separaram – a nosso interesse pela edição e a distribuição de materiais de velhos amigos e de novas pessoas que nos permitiram crescer ou simplesmente ampliar nosso raio de ação.
S.H. > Que objetivos propusestes?
J.M. < Não tínhamos um projeto a longo prazo nem objetivos muito concretos devidamente discutidos. Mas se me perguntas, nossos objetivos são simples: compartilhar literatura antiautoritária e potencializar encontros de caráter libertário em qualquer âmbito. Talvez, parafraseando Vidal da Blache, as características geográficas próprias do mundo editorial e livreiro no qual nos movemos (Mallorca) foram determinantes para que nós mesmas criássemos esses espaços e ferramentas de confluência.
S.H. > Vossa forma de funcionar concorda com o que expõe em vossas publicações…
J.M. < Não sei, isso talvez devam dizê-lo os que nos observam.
S.H. > Faz um tempo que nós os observamos.
J.M. < Bem. Nós não queremos nem temos necessidade de que nos atirem flores nem de ser exemplo de nada. Fazemos o que podemos e como podemos. Algumas estarão de acordo e outras não. O aceitamos. Para bem ou para mal, este caminho o decidimos nós mesmas, e já veremos até onde nos leva.
S.H. > Explica-nos, pois, como organizais; vosso financiamento, distribuição, etc.
J.M. < Em Calumnia, faz tempo que nos colocamos que não queríamos fazer negócio de tudo isto, que o fazíamos por prazer e que quando este desaparecesse o deixaríamos. Foi assim como três amigas decidimos dar o impulso para melhorar nossa estrutura colaborativa. O impulso foi quase uma tortura, meses de papéis e consultas para buscar uma fórmula na qual estivéssemos bem. Não queríamos torturar a ninguém com eternas assembleias nem com discussões sobre a transcendência do mundo editorial, assim que nos propusemos quatro coisas básicas e as levamos adiante. Deste modo, por exemplo, decidimos não aceitar nenhum tipo de subvenção para sustentar o projeto; que o preço dos livros o decidiríamos nós; que a edição, distribuição e o trato com as autoras também seria gestionada por nós mesmas; e outras tantas coisas com as quais não quero aborrecer a ninguém.
S.H. > Certo, entendido, mas o que fazem é preciso ser financiado de alguma maneira.
J.M. < Evidentemente, tampouco queríamos nos enganar: isto supunha assumir uns gastos econômicos e organizar uma infraestrutura que devíamos consolidar. Assim que pensamos que a melhor forma, nossa melhor forma, era contar com amigas e grupos comuns para estabelecer uma rede de assinantes que em troca de uma quota anual receberiam todas as nossas publicações. Os que dão apoio ao projeto, além disso, tem prioridade para publicar textos, já que eles também devem ser partícipes do processo, e lhes pedimos ajuda nas correções, ilustrações, textos e alguma outra cosa. No coletivo aprendemos a revisar, a compor, a distribuir, a pedir, a dar e a equivocar-nos em muitas ocasiões. Talvez muita gente não saiba que um número importante de nossos livros, e não me refiro aos meus pessoalmente, foram compostos por seus próprios autores; alguns baixaram seus programas; compartilhamos fontes e aprendemos juntas como montar, do principio ao fim, o livro. Um processo estressante mas muito recomendável.
S.H. > E pode-se “sair do gueto” tal e como está organizado o mundinho editorial?
J.M. < Sair do gueto? Não sei; parece que nos acostumamos a ele. Tudo depende dos objetivos e dos meios que considere cada um. Há editoras do mundinho libertário muito respeitáveis que creio que saíram desse micro mundo e se desenvolveram com força. Agora bem, que isso tenha ajudado a que mais pessoas se interessem pelas ideologias ou projetos que pudesse haver por trás desses textos é outra questão. Por outro lado, que essa situação facilite que alguns possam viver de seu próprio trabalho, no setor do livro, sem ter que depender das estruturas empresariais alheias, também me parece uma opção muito respeitável.
Nós não nos dedicamos a isto profissionalmente. Em meu caso, trabalho a dezesseis anos como professor, um ofício no qual passo muito bem e, ademais, me permite viver – em um sentido econômico –. Por sorte, não abandonei meu interesse pelos livros, ao contrário. Em alguma etapa de minha vida trabalhei no mundo editorial profissional, não da distribuição e no setor livreiro, e a verdade, há de tudo: desde os que sobrevivem como podem, até os que se profissionalizaram mediante a subvenção pública como modus vivendi. Pelo que vi é um grêmio em constante transformação. Faz pelo menos vinte anos que me movo nele e também vejo como se repetem as mesmas dinâmicas aqui e ali. Se me permite, se alguém pretende tornar-se rico com livros, talvez seja melhor que se dedique ao varejo com drogas ou a outra atividade que lhe oferecerá melhores rendas, mas como diriam – se me permites – Faemino e Cansado, “melhor isto que estar por aí delinquindo”. Se fosse para ganhar dinheiro nos dedicaríamos a editar outras coisas, mas como não queremos outras coisas aqui nos encontramos.
S.H. > Não parece nada simples, pois, sobreviver nesse mundo.
J.M. < Não é, ainda que não quero simplificar. Por exemplo, alguns utilizam fórmulas mistas que vão desde a participação dos circuitos comerciais até as feiras e encontros do livro anarquista. No setor editorial, como em outros, a balança está em mãos de uns poucos; mas não é menos certo que a situação atual permitiu que surjam e também se façam um nome editoras desde o antiautoritarismo que vislumbrem uma situação muito diferente. Nós, por exemplo, preferimos não entrar em segundo quais canais de distribuição – assumindo que são um porta-voz muito potente – em troca de seguir controlando todo o processo. Não queremos editar 1.000 livros para sentir-nos na obrigação de vendê-los e enganar as pessoas. Nossas tiragens, de 200-250 exemplares, nos permitem ter uns poucos pontos de distribuição amigos e a venda direta através de nossa web, com a qual asseguramos não converter nossas casas em verdadeiros depósitos de livros.
S.H. > Que critérios de publicação tens?
J.M. < Nossos critérios de publicação não são um dogma epigráfico nem as Tábuas da Lei; pretendemos que sejam de acordo com nossa forma de pensar e atuar em nosso dia a dia. Tratamos de publicar textos de temáticas próximas ao movimento libertário e que, com isso, sirvam para recuperar histórias que, de outra forma, talvez ficassem em um de tantos arquivos que conservamos em nossos computadores. Normalmente nos dedicamos, nós mesmas, a pedir originais e temáticas àquelas pessoas que sabemos que nos podem oferecer alguma história que nos interessa. Quando nos chega um original analisamos profundamente o texto e a viabilidade de sua publicação. Não temos nenhum tipo de contrato com as autoras, ainda que se lhes mandamos um compromisso, que está disponível em nossa web, onde lhes informamos de nossos meios, princípios e de que, se está de acordo, ficamos felizes em começar. No catálogo há autoras que estão muito consolidadas em outras editoras e outras que publicam pela primeira vez, mas cuidamos sempre que o trato para com elas seja o mesmo. Outro aspecto que já comentamos, mas que gostaria de lembrar, é que as assinantes de Calumnia tem prioridade na hora de publicar textos.
S.H. > E como estruturas as diferentes temáticas?
J.M. < Desde o início, pretendemos fomentar dois eixos que pensamos que nos acompanham. Por um lado, um dos pilares de Calumnia é a publicação de poesia, em castelhano ou em catalão, inclusive em esperanto; e por outro, o outro pilar que sustenta a maior parte de nossas publicações, é o ensaio histórico sobre o anarquismo. Entre ambos, temos já uns 50 títulos em distribuição. Não posso mais que agradecer a paciência e os materiais que nos facilitam as que publicam conosco, pois quando recebemos esses textos ainda temos esse lampejo que nos diz: “Caramba! É preciso publicar isto, que agrada muito”. E este entusiasmo não queremos perder.
S.H. > Pelo que te ouvimos dizer, 2018 foi uma autêntica loucura: mais de vinte títulos publicados. Como Calumnia enfrenta o próximo ano?
J.M. < Em 2017 já nos auto exigimos muito. Recordo o trabalho que nos deu levar adiante um livro como Anselmo Lorenzo. En el alba del anarquismo; apenas podíamos assumir economicamente o projeto, mas menos ainda que ficasse no esquecimento o empenho que havia detrás por parte de cada uma das autoras. Penso que valeu a pena, ao menos para mim.
Este ano foi uma loucura, não vou negar. Ao longo de 2018 publicaremos um total de 21 livros ou libelos. Imprimimos uns 4.500 exemplares e distribuímos entre nossas assinantes uns 800 livros. Também, e essa parte é a que queremos seguir cuidando, tanto as quotas como as vendas permitiram que possamos colocar uns 120 livros em bibliotecas sociais, ateneus, para presos ou pessoas em situação econômica desfavorável. Cada vez que editamos um livro tratamos de plantar exemplares em alguns espaços afins e que isso não lhes suponha custo algum. Por enquanto estamos conseguindo.
Tanto o ritmo como os custos econômicos são insustentáveis. Em algum momento tentamos resolver a falta de renda procedente das vendas com a edição em formato fanzine de alguns textos, mas isso ao final nos gerou mais falta de tempo ainda. Por isso, em novembro, iniciamos uma campanha de assinaturas para incorporar mais gente ao projeto e que, assim, permitam manter um ritmo de edição mais ou menos constante. Na realidade, com as assinantes deveria ser suficiente, mas sempre é um obstáculo difícil de resolver. Se alguma se anima, que nos contacte por correio, o processo é muito simples e pensamos que reconfortante para a assinante e para nós.
Para este próximo ano temos algumas obras já em mente. Certamente aparecerão novas. Mas posso avançar que antes do final de ano sairá um texto polêmico, como quase tudo o que gostamos, que se chama Consideraciones generales sobre la Violencia, de Ángel Pestaña, e que para princípios do ano teremos um livro de Josep Pimentel que se intitulará Refugiados, no qual se recolhem testemunhos inéditos sobre o exílio de 1939. Para antes do verão, também, temos nosso encontro anual com a revista Humanitat Nova, do qual já temos os primeiros textos e que promete consolidar-se; e um novo número da revista de poesia La Tormenta, um projeto conjunto com nossas irmãs de Piedra Papel Libro, um projeto imprescindível e recomendável para todas vós. Mas vamos, há outras tantas coisas que agora não quero adiantar, e que espero que possas seguir desde aqui.
O que fazemos se faz por prazer, assim que para 2019, além do anterior, faremos o que pudermos. Esta ideia nos agrada muito. Imagina, temos umas 50 assinantes que pagam uma quota anual fixa, que em 2019 será de 30 euros, e que não sabem se receberão 1 livro ou 15 em troca. Veja que somos suicidas! Por certo, para evitar mal entendidos: as pessoas da equipe e eu, evidentemente, somos também assinantes e pagamos nossas quotas – ia dizer religiosamente, mas creio que não é necessário —.
S.H. > Revela-nos algum debate interior dos que tenham surgido estes anos, seja prático ou mesmo teórico.
J.M. < Debate… Creio que temos debates quase todo dia com o que fazemos. Olha, no âmbito prático nos são colocadas muitas questões sobre se devíamos ou não vender livro em tal lugar ou neste outro. Também sobre se temos que implicar mais às autoras em seu processo de criação. Os debates são constantes. Por exemplo, agora – bom, faz uns meses – nos propusemos ajudar a vários coletivos próximos no ideológico de forma econômica. A fórmula que finalmente consensualizamos foi a de enviar-lhes livros e que eles gestionem sua venda e seu possível retorno econômico. Sabemos que se lhes mandamos dinheiro, ficamos sem imprimir, assim que a decisão foi essa. Talvez mais adiante seja outra; já te disse que estamos em debate e contradição constante.
S.H. > Pois seguimos, Jordi. Que não diminua.
J.M. < Muito agradecidas pelo interesse e parabéns por todo o empenho que estás fazendo. Já sabes que algumas colaboradoras de Ser Histórico tendem a ter sinergias conosco e isso é uma oportunidade que não queremos deixar passar. Beijos, saudações e a seguir.
Tradução > Sol de Abril
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