Análise do documentário lançado recentemente, “O que Resta de Junho” – sobre as chamadas “Jornadas de Junho” de 2013

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Quando eu vi a logomarca da CUT na abertura deste vídeo “O que Resta de Junho¹”, logo ‘caiu a máscara ’ para mim.

Esse filme, como não poderia deixar de ser, integra a campanha do esforço que o Partido dos Trabalhadores e suas organizações sociais – sindicatos aí compreendidos – satélites vêm empreendendo para tentarem retomar o apelo popular que vêm perdendo, marcadamente, desde 2013.

A estratégia de comunicação – ou melhor, de ‘reinterpretação midiática’ da história – adotada nesta produção segue, em boa parte, a mesma adotada pelos conhecidos vídeos “A Rebelião dos Pinguins” e “Acabou a Paz, Isto Aqui Vai Virar Chile” (sobre os movimentos de ocupações de escolas dos secundaristas chilenos e de São Paulo), produzidos pelo admirador da ditadura dos Castro, Carlos Pronzato, ou seja: trata-se da estratégia de colocar no primeiro plano da visualização, atores políticos integrantes de movimentos sociais satélites da esquerda partidária, quando, de fato, os fenômenos sociais abordados pelos filmes trataram-se, em larga medida, de algo com um caráter dominantemente autogestionário (não resultante e nem integrante do cenário político ‘oficial’ e instituído).

Porém, eu disse que a estratégia de ‘reinterpretação midiática’ da história neste “O que Resta de Junho” segue a mesma dos filmes de Pronzato apenas ‘em boa parte’ porque, neste “O que Resta…”, a estratégia difere em parte – no equivalente a cerca de um quarto do tempo do vídeo, talvez -, ao dar voz a alguns representantes do campo anarquista, o que é mais ‘esperto’ do que o que foi feito nos filmes sobre as ocupações de estudantes no Chile e no Brasil porque, tratando-se as Jornadas de Junho de 2013 no Brasil de um fenômeno que teve como uma das suas maiores marcas a auto-organização popular dos protestos, a expressão generalizada de um forte sentimento de rejei&cce dil;ão às instituições em geral e aos partidos em especial e – como se não bastassem estas agora mencionadas influências libertárias indiretas, que também se verificaram nos casos do Chile e de São Paulo – uma clara e forte presença direta de organizações de cunho anarquista, tais como a própria ‘raiz’ do MPL no movimento de Salvador, o qual foi fortemente impulsionado por militantes anarco-punks e indo até à disseminação da tática black bloc; diante destas ‘marcas sociais’, alijar completamente os anarquistas dessa produção audiovisual seria deixar claro demais as intenções partidárias e o caráter duvidoso do trabalho de ‘documentação’ (talvez já tenham aperfeiçoado este artifício a partir das repercussões do “A Rebelião dos Pinguins” e do seu ‘alter ego’ brasileiro, o “Acabou a Paz, Isto Aqui Vai Virar Chile”).

Digo que ‘o artifício foi aperfeiçoado’ porque, neste “O que Resta…”, diferentemente dos citados filmes sobre as ocupações de escolas no Chile e no Brasil, ao invés de se obscurecer completamente as influências anarquistas sobre os fenômenos em pauta – para desse modo favorecer uma ‘reinterpretação da história’ que ponha em primeiro plano o projeto reformista e eleitoreiro da esquerda partidária -, segue-se, aqui, uma outra via de ‘montagem’/reconstrução discursiva, que é a de dar voz aos anarquista mas, inseri-las em momentos tais e ‘ilustrá-las’ com imagens tais, que o sentido final da interpretação a que levam o espectador a fazer favorece o projeto p olítico d@s autoritári@s da esquerda partidária, utilizando-se para isto das próprias vozes d@s libertári@s.

Em termos concretos: a narrativa do vídeo se inicia com uma análise de um urbanista que defende a tese de que a reação popular à gentrificação das cidades foi um dos fatores na base do fenômeno de Junho e que as demandas aí manifestadas seriam expressas em exigências de outros projetos de cidades que não passem pela priorização do mercado, em detrimento da população (como se algum governo, no capitalismo, pudesse impor alguma estruturação e/ou dinâmica urbana não determinada pelo mercado); prossegue com uma análise de um sociólogo que chega à conclusão de que a rejeição generalizada aos partidos manifestada pela população durante as Jornadas de Junho se ria um erro, pois o problema não seriam as instituições mas apenas ‘os rumos’ que elas vem tomando; continua dando voz a representantes de movimentos sociais e sindicatos satélites do Partido dos Trabalhadores que até tocam de leve em algumas críticas às políticas de promoção dos interesses do grande capital promovidas pelo governo do PT, porém – como aliás é a grande marca de toda a ‘narrativa’ – em nenhum momento apontam claramente a responsabilidade direta da ex-presidente Dilma Roussef sobre todos os cruéis e arbitrários processos de repressões policiais ocorridos contra os protestos em nível nacional – o que pode ser constatado através do que está disposto no documento do plano estratégico da Secretaria Especial de Grandes Eventos, órgão criado pela presidência de Dilma R oussef para, entre outras coisas, coordenar em nível nacional todas as políticas de segurança adotadas pelos estados e municípios antes, durante e depois da Copa e das Olimpíadas -, pelo contrário, os esquerdistas entrevistad@s reproduzem o discurso ‘oficial’ de que todas as arbitrariedades foram de responsabilidade exclusiva dos governadores e comandantes de policiamentos locais e da FIFA – desviando assim o olhar do espectador para muito longe do maior parceiro oficial da FIFA e interessado em seu ‘sucesso’ na ‘Copa das Copas’, o governo federal de Dilma Rousef -; e a narrativa se encaminha para o seu final dando voz a alguns atores políticos libertári@s e ‘independentes’ – não associad@s a organizações sociais satélites de partidos -, porém, conforme foi dito, insere suas falas e/ou ‘ilustra-as’ em momentos e com imag ens tais, que favorece todo o sentido interpretativo que vai sendo construído até então – ou seja, o de que as Jornadas de Junho se constituíram como um processo em que ‘a esquerda’, ou seja, os partidos e suas organizações satélites, iniciaram um salto de compreensão e ajuste de rumos alavancado pela explosão social e que “A Partir de Agora” (para lembrar do título de outra dessas produções audiovisuais que integram a campanha e esforço da esquerda partidária para retomar o protagonismo nos movimentos populares) essas organizações serão cada vez mais indispensáveis para as lutas ‘do povo’ (e isto é dito com todas as letras pelo sociólogo ‘de plantão’ do vídeo) -, explico: durante a fala da Professora anarquista Camila Jourdan (a qual, aliás, diz muito lucidamente que está ciente da ‘guerra’ de construções de reinterpretações narrativas sobre Junho de 2013, porém, estranhamente, não classifica claramente seus entrevistadores no campo dos interesses das reconstruções partidárias das narrativas históricas), esta admirável libertária faz uma crítica coerentemente libertária à ideologia da ‘luta contra a corrupção’, porém, esta sua fala foi inserida logo em seguida a uma sequência de imagens sobre as manifestações a favor e contra Dilma Roussef – no âmbito do processo do impeachment -, nesta mesma ordem, de modo que, ao mesmo tempo em que esta sequência constrói uma falsa ideia de que as manifestações pró e a favor do impeachment são uma ‘extensão’ de Junho de 2013 – ora, estas manifesta ções foram, só para ficar nisto, altamente dirigidas por organizações partidárias, coisa completamente oposta ao ‘espírito’ de Junho de 2013 de modo que, se se pode dizer que o processo do impeachment foi, de certo modo, uma consequência daquelas jornadas, por outro lado, não se pode dizer que foi uma continuidade delas -, por outro lado, a sequência de imagens sobre as manifestações pró e contra Dilma configura um estratagema de fazer parecer que a rejeição aos partidos políticos é coisa oriunda do campo ‘reacionário’, da direita – durante a sequência em pauta é destacada a imagem de uma mulher discursando em um carro de som durante uma manifestação contra Dilma e o trecho do discurso é exatamente uma pregação contra os partidos -, de modo que, ao inserir na sequência a fala – da Professora Camila Jourdan – crítica da ideologia do combate à corrupção, ou seja, crítica da grande bandeira associada à direita naquele processo, a interpretação a que o espectador é levado a fazer aí é a de que, primeiro, @s anarquistas estão do lado do PT na defesa de Dilma Roussef (coisa que a própria Professora Camila Jourdan rejeitou em um artigo publicado à época do processo em questão) e, depois, a inserção estratégica da fala da professora dá a entender também que, se @s anarquistas estão ao lado PT, então, @s anarquistas também não apoiam a tendência de rejeição aos partidos – equivocadamente retratada no vídeo como sendo uma bandeira de origem reacionária, pois, como qualquer pessoa melhor informada sabe, esta é uma marca histór ica d@s anarquistas. Resta ainda explicar o estratagema montado para ‘desnaturar’ a mensagem final do anarquista Emerson Fonseca, entrevistado junto a Camila Jourdan: conforme já foi dito, esta estratégia consiste em ‘ilustrar’ suas palavras finais com imagens que configuram um verdadeiro ‘imaginário’ favorável aos discursos e organizações do campo da esquerda partidária, concretamente: Emerson Fonseca, de uma forma coerentemente libertária, diz – em linhas gerais – que tentar dirigir os movimentos populares é um erro e que apenas ‘o povo’ pode definir as formas e os rumos da sua luta e, enquanto a voz do anarquista faz esta crítica obviamente direta aos partidos políticos, o vídeo enche a tela com imagens de manifestações de ‘organizações de minorias’ – aliás, marcadamente reformistas, e não revolucionárias, como é o discurso d@s anarquistas – sabidamente integrantes das chamadas ‘áreas de influências’ dos grandes partidos da esquerda brasileira, deixando assim o espectador desprevenido com a ideia de que o que o anarquista está falando é que seriam, supostamente, estes ‘movimentos populares’ que pretensamente deveriam ter o protagonismo nas lutas que imagina.

Porém, como não poderia deixar de ser, ‘o gran finale’ de “O Que Resta de Junho” é onde finalmente – para ser redundante, em coerência com a construção narrativa deste final – se faz as construções narrativas imagéticas necessárias para ‘fechar’ todas as ‘brechas’ que por acaso tenham ficado abertas no ‘discurso’ assim construído, de forma que @ espectador compreenda definitiva e claramente a mensagem: a sequência de imagens em preto e branco que fecha o vídeo, a título de ilustração sobre o cenário social do Brasil e o fenômeno abordado por esta produção – as Jornadas de Junho de 2013 – é aberta logo de saída com registros de um acampamento em uma praça pública onde se vê, bem no meio da imagem, justamente uma bandeira do… Partido dos Trabalhadores…

Bastante significativo é o fato de que – de forma não meramente ‘coincidente’ com os vídeos ‘documentários’ do admirador da ditadura dos Castro sobre as ocupações estudantis no Chile e no Brasil -, quando “O Que Resta de Junho” trata das ocupações de escolas pelos secundaristas, este fenômeno é abordado apenas a partir do momento em que as organizações satélites dos partidos de esquerda já tinham conseguido se tornar dominantes aí, ou seja, a partir do ano de 2016, quando as ocupações, que tinham se iniciado como um movimento claramente autogestionário e abertamente combatente das ingerências das organizações partidárias e seus satélites sobre os movimentos estudantis oficializados, acabaram sendo transformadas em verdadeiros celeiros de militantes partidários e carreiristas da ‘representação’ estudantil, conforme mostram – para o bom entendedor – algumas imagens que ilustram este momento no vídeo, com escolas cheias de bandeiras de organizações em questão.

Anarquistas, não nos enganemos: diferentemente do que a esquerda partidária quer fazer parecer com estas suas narrativas ‘documentais’ que constroem um discurso do ‘tod@s junt@s’ – libertári@s e autoritári@s – nos processos de mobilização social, na verdade, o seu projeto sempre foi e continua sendo o de apagar completamente – ou secundarizar – o projeto ácrata da história, pois, ainda hoje como ontem (conforme nos demonstra claramente os textos de Bakunin contra Marx), os nossos projetos de sociedade são, mais do que diferentes, antagônicos, pois eles – @s autoritári@s -, querem um Estado e partidos fortes, com grandes ‘pais’ e/ou ‘mães’ polític@s para pretensamente ‘sa lvar o povo’, enquanto nós – @s ácratas – queremos a autogestão generalizada da sociedade, a autoemancipação do proletariado, a horizontalidade das relações políticas, sociais e econômicas, e querer misturar estes dois projetos equivale a querer misturar água e óleo: uma coisa exclui a outra. Caso contrário, corremos o risco de repetir os mesmos erros cometidos pelos anarquistas desde os confrontos entre Marx e Proudhon (quando este acolheu Marx como seu ‘aprendiz’ e depois foi caluniado em livros por aquele) e entre Marx e Bakunin (quando este não esperou que Marx fosse pérfido o suficiente para fazer o que acabou fazendo: manipular uma votação de resolução e assim expulsá-lo da A.I.T.), passando pelos erros d@s anarquistas nas Revoluções Russa e Espanhola (que não se precaveram contra as traiç ;ões dos marxistas que @s aniquilaram enquanto força social – inclusive, fisicamente – nestes processos revolucionários), e chegando até ao equívoco d@s anarquistas que lutaram junto a Fidel Castro e que, após a vitória de ‘El Patron’, foram eliminad@s pela sua ditadura.

Quando eu vi a logomarca da CUT na abertura deste vídeo “O Que Resta de Junho”, logo ‘caiu a máscara ’ para mim, porque eu sei que, do mesmo modo como é para @s autoritári@s liberais, assim também é para @s autoritári@s da esquerda: “não existe almoço grátis”.

E @s anarquistas continuam sendo @s únic@s ingênu@s que acreditam na suposta ‘honestidade’ d’ – e ainda colaboram e reproduzem – os produtos culturais planejados pela esquerda partidária para manipular a opinião pública.

Vantiê Clínio Carvalho de Oliveira

[1] https://www.youtube.com/watch?v=gQvK9RzOPP8

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