Isolamento, 4 de abril de 2020.
Mãe,
Outra vez, não sei porque demorei pra escrever. As coisas continuam em Isolamento como antes, a rotina segue parecida, mas alguns acontecimentos me fizeram pensar bastante nos últimos dias.
Saí de casa algumas vezes desde que escrevi por último. De dia e de noite. Fui passear a cachorra, fazer compras no mercado, ir à farmácia. Cada uma dessas saídas me deixou pensando coisas diferentes. Na primeira, com a Preta, dei uma volta curta aqui por perto e parecia que era domingo em plena terça-feira. Quase tudo fechado, metade da rua ensolarada, poucos carros. Coisas não muito comuns quando assistimos a filmes em Isolamento, sempre cheios de carros, correria, trânsito e cinza. Fiquei tentando me lembrar de um filme pelo menos em que Isolamento não fosse cinza. Não consegui.
Na segunda saída, dessa vez à noite, a vida parecia ter sido suspensa. Pelas ruas, apenas Sobreviventes, que é como eles chamam as pessoas pobres e de rua em Isolamento e em Quarentena. Chega a ser irônico que em lugares tão reclusos aqueles e aquelas que ainda saem às ruas sejam chamados de Sobreviventes. Sobrevivem porque não respeitam a reclusão, ou não respeitam a reclusão porque precisam sobreviver? Fui pensando nisso no caminho até a farmácia e na volta dela. Em algumas ruas, me vi em um daqueles filmes de zumbi, dava pra sentir uma certa hostilidade no ar – e dessa vez ela não vinha dos carros. Olha eu falando de filmes de novo. Temos assistido muitos deles em Isolamento, a maioria ruim. Você sabe que eu adoro filme ruim. Mas esses não estão me dando muito prazer, assim como essa ida à farmácia. Desde que chegamos a Isolamento, mãe, não me lembro de me sentir tão sozinho quanto nessa caminhada.
A terceira saída foi até o mercado. No dia seguinte a um dos pronunciamentos do presidente, que continua fora de Isolamento. Convocou as pessoas às ruas, disse que os comércios deveriam reabrir e as escolas idem. Tudo que é tido como “não essencial” está fechado, mãe, mas nesse dia muitas lojas de carro estavam abertas. Curioso como logo as lojas de carro resolveram abrir depois do chamado do presidente. Talvez viver em seus carros em Isolamento seja mais essencial do que todo o resto. Ou talvez o culto ao carro particular por aqui seja tão forte que os primeiros a desrespeitar as regras de reclusão sejam aqueles que idolatram seus veículos. O fato é que, com as pessoas reclusas, nesse dia parecia que eu não estava em Isolamento, tanto pela quantidade de pessoas na rua quanto pela de carros. O que me levou a pensar que, de certo modo, qualquer um que viva em Isolamento e não adoeça já mereça ser chamado de sobrevivente.
Minha última saída foi de novo com a Preta. Nunca vou muito longe de casa com ela, pra não correr risco à toa. Aqui onde vivemos a polícia ainda não reprime com violência quem quebra a reclusão, mas vi alguns vídeos e li relatos de coisas horríveis acontecendo em outras bairros em Isolamento. Esse passeio com a Preta foi também pela história, já que era data de aniversário do golpe civil-militar que tomou o poder e se encastelou por mais de 20 anos. Em Isolamento, a democracia ficou em segundo plano por muito tempo. Não que eu seja um grande fã da democracia, pelo menos não dessa democracia que se diz representativa mas só representa os interesses econômicos dos bilionários, mas a ditadura deixou muitas marcas na sociedade por aqui, algumas delas nunca superadas. Me lembrei de você e das histórias que me contou de quando era militante, dos amigos que desapareceram, foram presos e torturados. Foi bastante simbólico passar pelo aniversário da ditadura em Isolamento tendo que respeitar regras estritas de reclusão.
Falando em aniversário, mãe, a Má e eu completamos 4 anos juntos. Foi a primeira vez que passamos nossa data em Isolamento. Mas foi tudo bem, principalmente porque nossa casa por aqui é muito confortável. Não é grande, nem pequena, é do nosso tamanho, veste a gente direitinho. Bate muito sol, o que é fundamental em meio ao cinza que pinta a paisagem por todos os lados em Isolamento. E nós conseguimos organizar ela bem do nosso jeito. Nos sentimos muito confortáveis aqui. Fico pensando em como isso mudou a minha vida e a minha relação com o estar em casa e na rua. Eu gosto muito de estar em casa, entrar em casa, ficar em casa. Talvez por isso não me veja tão desesperado pela rua quanto alguns amigos, principalmente aqueles que estão sozinhos em Isolamento. Sinto saudades principalmente dos dias de futebol, mas mesmo neles grande parte da minha satisfação era voltar pra casa.
Mãe, esse sentimento de gostar de casa me leva de volta às ruas e aos Sobreviventes: em todas as minhas saídas, voltar pra casa me pareceu um enorme privilégio.
Você lembra quando eu era jovem, e saía toda sexta com os amigos pra distribuir comida e conversar com a população de rua no nosso bairro? As coisas por aqui, hoje, se parecem muito com aquela época. A diferença é que, em Isolamento, não tem os amigos pra retomar essa ação de solidariedade – ou qualquer outra. Estão todos em suas casas, com medo das regras de Isolamento e de Quarentena.
Não vou terminar dizendo que estou com saudades, mãe. Porque eu estou, e dizer isso deixa esse sentimento pelado, nu, exposto. E eu não gosto muito de expor certos sentimentos em Isolamento. Desde que o pai morreu, chorar pelas coisas pareceu perder o sentido. Você sabe disso. Mas de uns anos pra cá eu tenho reaprendido a chorar, e entendido melhor a importância disso. Só que a forma como me sinto depois de chorar me deixa mais pesado do que eu gosto de estar pra passar os dias em Isolamento. Então eu prefiro enfiar um casaco de inverno nos sentimentos, pode ser aquele que você me deu e sempre pergunta se eu estou usando, e deixar eles bem encapotados e seguros, longe do meu inverno emocional. E deixo pra tirar a roupa de uma certa plenitude que me possui quando lembro do seu abraço, do seu cafuné e das suas perguntas intermináveis quando eu chegava em casa.
Por tudo isso, mãe, não vou terminar dizendo que estou com saudades. Estou com vontade de te ver, isso sim.
As saudades, quero deixar em Isolamento.
Te amo,
D.
sempredesobedecer.wordpress.com
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Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!