Apoio mútuo e organização popular na Espanha do coronavírus

Por José Luis Carretero | 16/04/2020

A pandemia do coronavírus se espalhou brutalmente pela Espanha, chegando a colapsar seu sistema de saúde pública, que sofreu um acelerado processo de degradação e desmantelamento desde a implementação das políticas neoliberais de austeridade implementadas na crise de 2008, e desde o processo de privatização inaugurado pela Lei 15/97, aprovada por um governo do PSOE [partido socialista operário espanhol].

O Serviço Público de Saúde espanhol, que perdeu milhares de leitos e unidades de terapia intensiva na última década, também fez milhares de demissões profissionais nesse mesmo período, e manteve seu pessoal em uma situação de crescente falta de recursos e enorme sazonalidade no emprego.

Mas o processo neoliberal de desmantelamento dos serviços públicos não se concentrou, nas últimas décadas, apenas no sistema de saúde: os serviços sociais dedicados a deficientes ou desabrigados, bem como os mecanismos de educação ou renda mínima para famílias sem recursos, sofreram inúmeros cortes. Os gastos sociais têm sido fortemente limitados, enquanto os montantes dedicados ao pagamento da crescente dívida pública têm aumentado e as instituições financeiras têm sido socorridas.

Este precário Estado Social espanhol, que nunca se desenvolveu tanto como no resto da Europa, entrou em colapso, como um todo, desde a disseminação do coronavírus e a implementação das medidas de confinamento.

A parada forçada na atividade econômica, motivada pelo confinamento, provocou mais de um milhão de demissões, a implementação dos Expedientes de Regulação do Trabalho Temporário (ERTEs, pelos quais aqueles que perto de três milhões de trabalhadores recebem uma quantia semelhante a 70% do seu salário anterior), a falência de centenas de milhares de pequenas empresas e trabalhadores autônomos, bem como a simples e brutal caída na marginalidade de todos os trabalhadores informais, como os trabalhadores do sexo, vendedores ambulantes, aqueles que fizeram pequenas “ñapas” (reformas caseiras na economia subterrânea) ou pessoas que já estavam desempregadas antes da crise.

Literalmente, milhões de pessoas têm se encontrado com renda muito limitada ou sem renda em um momento em que, além disso, o sistema público de serviços sociais, o cuidado com pessoas vulneráveis ou os mecanismos administrativos para implementar a ajuda aprovada pelo governo estão em colapso. Centenas de milhares de trabalhadores afetados pelas ERTEs não sabem quando começarão a receber o subsídio de desemprego (que, como dissemos, representa cerca de 70% do seu salário anterior), porque o Serviço Público de Emprego entrou em colapso. Os autônomos e pequenos empresários enfrentam a mesma situação, dada a demora na implementação dos auxílios e subsídios, bem como dos empréstimos garantidos pelo Instituto de Crédito Oficial (entidade pública) que buscam permitir a sobrevivência de muitas pequenas empresas.

As pessoas que já estavam em situação de grande vulnerabilidade antes da crise (desempregados, trabalhadores informais, sem-teto, imigrantes indocumentados, etc.) estão enfrentando um cenário caótico, já que a ajuda pública aprovada se destina apenas àqueles que de alguma forma perderam algo para a pandemia (um emprego, uma empresa) e os serviços sociais públicos e bancos de alimentos da Igreja ou movimentos sociais foram fechados ou estão operando sob constante assédio daqueles que têm que fazer cumprir o confinamento. Além disso, centenas de milhares, se não milhões, de pessoas idosas estão vivendo sozinhas com benefícios de aposentadoria muito escassos em moradias precárias. Também são incapazes de sair para o trabalho ou para comprar alimentos, pois muitas vezes têm doenças crônicas que, diante do colapso do sistema de saúde, interromperam seu tratamento.

Neste cenário brutal, porém, as manifestações de solidariedade, apoio mútuo e auto-organização das classes populares não desapareceram. O movimento sindical combativo e os movimentos sociais continuam a implementar todo tipo de iniciativas que buscam afirmar a uniformidade e as possibilidades de construção de uma força popular autônoma capaz de deter este pesadelo nascido do sonho neoliberal ruim das últimas décadas.

O movimento sindical de base tem sido decisivo no fechamento de certas empresas que não cumpriam os requisitos mínimos em termos de Saúde e Segurança Ocupacional, bem como no cumprimento de recomendações de saúde em muitas empresas, apesar da resistência de alguns setores dos empregadores. A fábrica da Mercedes Benz em Vitória teve que ser parada pelos representantes dos trabalhadores, pois eles não estavam trabalhando em condições seguras. Da mesma forma, o sindicalismo combativo tem estado por trás de procedimentos que levaram à paralisação das atividades ou à tomada de maiores medidas para prevenir a doença em grandes empresas como a Konecta (a maior multinacional de call centers da Espanha) ou os metrôs de Madrid e Barcelona.

Além disso, o sindicalismo combativo implementou inúmeras iniciativas que visam manter a classe trabalhadora informada sobre seus direitos e capaz de tecer redes de solidariedade eficazes em meio à gigantesca transformação em curso, na qual é difícil seguir o fio condutor das novas regulamentações que saem quase todos os dias, das quais os trabalhadores muitas vezes desconhecem. Tem havido uma abundância de linhas telefônicas gratuitas ou contas de e-mail para assessoria em questões trabalhistas, habitacionais ou de serviços sociais, como as organizadas pelo Sindicato de Ofícios Vários do Solidariedade Obreira, com sede em Barcelona, pela Comarcal del Sur da CNT, com sede em Madrid, ou a seção sindical da Solidariedade Obreira no Serviço Público de Emprego (SEPE).

Da mesma forma, os bancos alimentares dos movimentos sociais, baseados nos princípios de auto-organização e apoio mútuo, têm continuado a funcionar, às vezes diante do crescente assédio das forças de segurança do Estado. Organizações sociais como os Bancos dos Trabalhadores de toda Espanha, ou grupos de bairro como a Plataforma dos Desempregados de San Blas e Canillejas (em Madrid) ou o fundo de solidariedade do centro social La Xisqueta (em Santa Coloma de Gramanet, na província de Barcelona) têm continuado a distribuir pacotes de alimentos, produtos de higiene ou medicamentos para as casas das famílias mais vulneráveis. Essas iniciativas têm por vezes encontrado repressão estatal sem razão aparente: recentemente foi multado um banco de alimentos dedicado à prática antirracista. Também encontraram um apoio claro: o sindicato Solidariedade Obreira abriu recentemente uma conta para comprar alimentos para trabalhadores desempregados com os 10 euros que a direção do Metrô de Madrid pagou a cada empregado para comprar material sanitário (o que os trabalhadores chamaram de “os 10 euros da vergonha”, já que é uma quantia irrisória com os preços espanhóis). Da mesma forma, o Sindicato Popular de Vendedorxs Ambulantes de Barcelona criou uma rede de solidariedade e banco de alimentos para este setor, que é particularmente vulnerável à crise.

Por outro lado, diferentes organizações do movimento habitacional estão preparando uma greve de aluguel para o futuro próximo. Gonzalo Maestro, membro do Coordenador de Habitação de Madrid, nos diz: há um grande número de pessoas que serão forçadas a inadimplir seus aluguéis e hipotecas num futuro próximo, e a ajuda pública consiste em moratórias limitadas ou microcréditos, não no perdão de dívidas. O movimento havia lançado uma campanha de isenção de aluguel e recebeu em poucos dias informações sobre mais de 10.000 casos de pessoas que não poderiam pagar o aluguel. Estão se preparando para irromper com uma grande greve de aluguéis, hipotecas e suprimentos (água, eletricidade, gás) a nível nacional. Um comitê de greve em nível estatal foi organizado e os municipais e de bairro estão sendo estruturados. O movimento está sendo construído para tentar dar esse salto e ser capaz de gerar colchão social suficiente para impulsionar a ação.

Tudo isso nos mostra um cenário onde o confinamento, a crise sanitária e a crescente limitação das liberdades, não conseguiram fazer desaparecer a dinâmica da auto-organização social e do apoio mútuo das classes populares. A luta de classes continua, apesar de tudo. O novo mundo é apontado mesmo nos olhares das varandas confinadas. As pessoas fortes, o poder da base e do trabalho, se reconhecem mesmo no mais profundo descalabro.

Fonte: https://www.revistacrisis.com/index.php/debate-global/apoyo-mutuo-y-organizacion-popular-en-la-espana-del-coronavirus

Tradução > Liberto

agência de notícias anarquistas-ana

sol na varanda –
sombras ao entardecer
brincam de ciranda

Carlos Seabra