[Espanha] O livro anarquista em tempos de crise sanitária

Dizia Lucía Sánchez Saornil que “um livro é uma enxada que vai mexendo a nossa argila, esfarelando e trabalhando para o convertê-la em terra fértil” e que “um livro pode nos empurrar violentamente do outro lado das coisas, e de repente nos encontramos com uma nova fórmula para a vida, com uma inversão de valores que não suspeitávamos”. Os livros (nos) transformam e com eles (nos) aprendemos.

Certamente, um livro é sempre uma janela aberta para infinitas possibilidades. No anarquismo e anarcossindicalismo sempre compreendemos a importância, como arma política e social, da divulgação de ideias através de formatos como a imprensa, panfletos e livros. Por isso, consideramos necessário dar conta da atividade, no nosso presente, de projetos que giram em torno do livro libertário, situando-os neste panorama incerto que nos atravessa desde que a crise sanitária se inseriu no nosso dia a dia.

Projetos como os encontros do livro anarquista, que povoam muitas de nossas cidades; livrarias especializadas que nutrem nossos bairros e proximidades; editoriais que tornam férteis os debates e reflexões sobre as ideias de emancipação; leitoras ávidas por páginas onde desmoronar e trabalhar. Sabemos que existem muitos projetos e pessoas – cada vez mais – que habitam este cenário cultural, e que essa abordagem é parcial, mas acreditamos que dá conta de muitos dos sentimentos que invadiram este ano aquelas de nós que sentimos o livro como parte essencial do nosso dia a dia.

Fomos à livraria da Fundación Anselmo Lorenzo (FAL), na rua Peñuelas, em Madrid, no mesmo bairro onde nasceu a nossa Lucía. Conversamos com seu livreiro, Miguel Ángel, sobre o panorama atual do mundo do livro libertário e ele nos mostra seu otimismo: “a democratização das ferramentas editoriais, juntamente com as possibilidades que a impressão digital traz, levam neste momento à uma eclosão de literatura e projetos editoriais libertários como não se via há muito tempo, talvez desde a Transição”. Nos fala também da cessação de toda a atividade cultural que se abriga no espaço: “a crise implicou uma pausa num primeiro momento, mas depois, com a potencialização de vendas e eventos online, recuperou um pouco”.

Víctor Rodríguez Lledó, companheiro da CNT-Jaén, partilha a visão otimista quanto ao surgimento de projetos ligados à trama do livro libertário. Víctor é um leitor que participa em vários projetos editoriais como membro assinante, algo que ele vê como “uma alternativa que também o liga de uma forma especial a eles”. A sua percepção é “que estamos no melhor momento —se falamos dos últimos 10 ou 15 anos— em termos de volume e qualidade dos conteúdos publicados”. Por sua vez, a companheira Carmen Gallar Sánchez, da CNT-Madrid, nos fala de uma forma mais global sobre o movimento libertário, que viu cabisbaixo desde aquelas manifestações contra a operação Pandora e Piñata; reconhece que “naquele tempo ainda havia espaços na imprensa alternativa dedicados ao anarquismo… Hoje, além de Todo por hacer, resta pouca coisa em formato de jornal”, enquanto que, centrando-se mais nas editoras, acredita que “algumas resistem com uma certa solvência, como Antipersona, Calumnia ou Piedra Papel Libros, e algumas têm tido êxito com um público mais geral, como a Pepitas de Calabaza ou La Felguera. Outros, que tiveram êxito nos nossos círculos, foram perdidos, como a Klinamen”; também nos confessa que “perder a Klinamen foi um golpe”.

Falamos com três editoras que têm muito em comum. No início da pandemia pararam toda a distribuição para que as trabalhadoras de entregas não se expusessem ao vírus; são três editoras que, apesar de não dependerem financeiramente dos rendimentos das suas publicações, dedicam atenção e cuidado a tudo o que fazem.

Editora Volapük nasceu em 2013 como um projeto de divulgação cultural crítico e libertário, publicando textos de todos os gêneros literários. Sergio Higuera conta que toda a sua atividade paralisou, com uma letargia que ainda persiste. Nos primeiros meses de confinamento liberaram os títulos restantes da tetralogia de desempoderamento: Autogestão cotidiana da saúde e Educação sem propriedade, “nunca foram mais relevantes”, assegura Sergio.

Calumia Edicions, por seu lado, é uma dessas editoras que trabalha com assinantes; foi oficialmente constituída em 2010 e publica textos sobre temas libertários organizados em torno de várias coleções de literatura e história, e também publicações periódicas. Jordi Maíz nos conta que “a crise sanitária nos afetou basicamente do ponto de vista emocional. Nós não vivemos de livros”, já que a editora surgiu “para partilhar experiências poéticas, históricas e literárias, mas a partir do presente, onde, sob o pretexto de um livro, pudéssemos ver nossos rostos, sorrir, debater e nos abraçarmos. Isso foi perdido”. Esta situação os levou a mudar de ritmo, já que reconheceram que estariam “envolvidos num processo de edição totalmente acelerado”. Agora estão trabalhando, junto com o coletivo memorialista Els Oblidats, em diversas investigações sobre o anarquismo em Mallorca.

É um caso similar ao da editora Episkaia, que foi afetada pela crise sanitária “sobretudo a nível pessoal”. Uma das suas editoras, Clara Morales, nos conta que o projeto “nasceu como fanzine em 2006, publicamos o nosso primeiro livro em 2016 e começamos nossa nova etapa, mais ativa, em 2018”; publicam obras coletivas com as quais refletem em conjunto a partir de diferentes prismas e em torno de um tema comum, com especial interesse em títulos que não aceitam o estado atual das coisas e com uma visão crítica que vem do ecologismo e do feminismo. “A pandemia confirmou uma ideia que já tínhamos: os livros não têm uma data de validade”, observa, e prossegue, salientando que também “mostrou de forma mais crua os efeitos de um sistema baseado no monopólio, na concorrência desleal e precariedade como a da Amazon. E nos faz apreciar mais os encontros cara a cara com as leitoras”. Agora estão imersas na apresentação ao público de sua novidade Utopía no es una isla de Layla Martínez.

Todas nos falam da necessidade de encontros físicos, de partilhar espaços, de beijar e abraçar. Precisamente, a primeira feira que teve de ser cancelada, quando tudo estava praticamente fechado, foi a Feira do Livro Anarquista de Sevilha. A sua 11ª edição seria realizada no fim de semana de 27 de março, apenas algumas semanas após esse 9 de março, quando a quarentena começou para nós. A organização reconhece que “foi doloroso, não só pelo trabalho e recursos investidos, mas também pela ilusão de viver a Feira Anarquista, que é um evento muito especial e importante para a Sevilha libertária”. Foi o que também sucedeu, mas alguns meses depois, às camaradas da Feira do Livro Anarquista de Bilbao, que deveria ter sido realizada em 16 de maio.

Ambas as organizações compartilham que estão às custas da evolução da crise sanitária, no entanto, ambas têm esperança de voltar a realizar o evento. Enquanto em Bilbao pretendem manter o cartaz de 2020, desenvolvendo o evento num espaço público ou num local autogestionado, em Sevilha estão “considerando outras possibilidades de poder fazer algo para partilhar com o público, como podcasts, divulgação de conteúdos, pequenas apresentações de fanzines ou livros”.

Vêm à mente livrarias como El Lokal ou La Malatesta; editoras como La Linterna Sorda, Descontrol, Virus ou Imperdible; encontros como a Mostra del Llibre Anarquista de València ou o Encuentro del Libro Anarquista de Salamanca… Uma trama que cresce e que desejamos voltar a desfrutar em breve. Enquanto isso, a solidariedade e o apoio mútuo (nos) sustentam e dão calor, também em tempos de crise sanitária.

Fonte: https://www.cnt.es/noticias/el-libro-anarquista-en-tiempos-de-crisis-sanitaria/?fbclid=IwAR1RrglS2AZJt1VBf00i1VsC85eaqZOu8JaGfBgq6EE_WCnMFPCM1_PLKp0

Tradução > Argy

agência de notícias anarquistas-ana

Não pude imaginar
Esse tigre invisível
Que vês em meu nariz

Jeanne Painchaud