[Reino Unido] Lições dos projetos de ajuda mútua do Covid-19

No início da pandemia, o Freedom lançou um chamado para financiar grupos de apoio mútuo para ajudar pessoas enfrentando dificuldades com o isolamento, o que espetacularmente viralizou. Anna K, uma das organizadoras originais do fenômeno, reflete sobre as lições aprendidas com a experiência.

Em abril de 2020, ofereci cinco reflexões [1] sobre os sucessos e falhas de grupos de ajuda mútua do Covid que surgiram pelo país inteiro:

• A maior parte da ‘ajuda’ sendo oferecida era em serviços de compras voluntários e não desafiava o Estado ou o capital.

• Alguns grupos almejavam ir além da troca de mercadorias, com atos de redistribuição econômica direta, disponibilização gratuita de recursos e mobilização para resistir a despejos.

• Até os grupos de “serviços de compras” ofereceram ajuda material real a dezenas de milhares, muitos dos quais batalhavam por sua sobrevivência graças à cripto-eugenia da resposta do governo.

• Grupos de ajuda mútua locais ajudaram a construir — em velocidade extraordinária — ligações de amizade e solidariedade desfeitas por 40 anos de neoliberalismo racista.

• Poderíamos empurrar esses grupos de apoio mútuo em uma direção emancipatória ao promover estruturas democráticas, conectando-os com outras lutas e promovendo formas de auxílio e solidariedade além das compras.

Ainda defendo isso hoje. O apoio mútuo ao Covid fez um ótimo trabalho em escapar as usuais bolhas insulares da extrema esquerda, forjando conexões entre pessoas que habitam a mesma área geográfica, mas que não compartilham identidades políticas e geralmente teriam poucas razões para interagir.

Isso não ocorreu sem problemas. Racismo, capacitismo e dominação de classe foram excessivos em muitos grupos, enquanto autoridades locais — particularmente vereadores dos trabalhistas — tentaram sabotar e/ou cooptar esforços que escapavam seu controle direto. Todavia, a natureza local e não-burocrática desses grupos os permitem estabelecer e atender às necessidades materiais das pessoas muito mais rápida e efetivamente do que agências do Estado ou caridades corporativas.

Muitos, contudo — incluindo grupos com os quais eu estava envolvida —, caíram em um modelo de serviço despolitizado, no qual um grupo de voluntários ajudou outro; grupos que se distinguiam ao fazer suas compras em supermercados (os quais exploram trabalhadores e fornecedores, agridem o meio ambiente etc). Sem uma visão política mais ampla, muitos grupos tiveram dificuldades em se manter para além do “pico” da primeira onda da pandemia.

Talvez o que condenou tais grupos de fato, enquanto a alavancada de grupos de apoio mútuo envergonhou ambos o governo e o terceiro setor, foi a falha em transformar a situação em uma crítica claramente articulada à forma com que o governo lidou com a pandemia, quem dirá em um movimento capaz de se opor a ele. Ao invés de conscientizar o coletivo, a “ajuda mútua” do Covid foi facilmente assimilada à narrativa do “espírito de Blitz” nacionalista. De fato, os mais cínicos podem argumentar de que o apoio mútuo relacionado ao Covid se aproximou dolorosamente do sonho vermelho conservador de uma “grande sociedade” preenchendo o espaço de um Estado que retrocede (na verdade, entre publicações impressas e online deste artigo, ambos liberais e conservadores tentaram espalhar exatamente essa ideia) [2].

Nada disso pretende sugerir que não deveríamos ter nos dado ao trabalho ou que não deveríamos direcionar nossas energias aos projetos de apoio mútuo. As mudanças climáticas nos garantem que encararemos mais desastres “que acontecem uma vez a cada geração”, o que faz dos projetos de ajuda mútua menos uma questão tática e mais uma necessidade (como aponta Eshe Kiama Zuri em gal-dem [3], esse sempre foi o caso para grupos oprimidos). Quando se trata de projetos de apoio mútuo de massa, temos poucas chances que não seguir a injunção de Beckett: tentar novamente, falhar novamente; falhar melhor.

Falando de política

Em alguns grupos de apoio mútuo, focamos tanto em evitar que vire uma câmara de eco esquerdista que nos esforçamos para não parecer muito “políticos” por medo de afastar as pessoas. Ao invés disso, resolvemos introduzir a política mais adiante ou, ainda pior, pensamos que não precisamos, confiando que a natureza “inerentemente” política da ajuda mútua moverá as pessoas para uma visão de oposição e libertária.

Como o último ano nos mostrou, isso foi ingênuo de nossa parte. O “bom” momento para introduzir o cunho político nunca chegou e na medida em que houve uma trajetória, foi voltada à caridade, não à solidariedade.

Isso foi agravado pela urgência da crise e altos níveis de necessidade. Até em meu grupo Lewisham sulista ultralocal, recebíamos tantos pedidos por comida e remédios que tínhamos pouco ou nenhum tempo para pensar criticamente e, com o nosso estresse e exaustão, foi muito fácil cair em um modelo de prestação de serviços.

Se evitaremos tais armadilhas no futuro, não podemos esperar até o pico da próxima crise. Devemos usar tréguas (relativas) em nosso presente desastroso para estabelecer grupos locais cujo cometimento ao apoio mútuo emancipatório anticapitalista está escrito no DNA organizacional, para então, quando chegar o desastre, poderem responder rápida e efetivamente sem se degenerar em um terceiro setor faça-você-mesmo.

Para construir essas organizações, devemos nos comprometer a ter conversas longas, e às vezes difíceis, sobre política. O objetivo no passado já foi o engajamento da esquerda revolucionária nesses grupos, mas hoje geralmente parece que fazemos qualquer coisa para evitá-la. Os limites do movimento de ajuda mútua no Covid demonstraram que isso não pode continuar. Se vamos construir consciência revolucionária de classe, não podemos basear a nossa organização em uma fantasia supostamente neutra de “ajudar aqueles que precisam”, mas apenas em um desejo coletivo de um mundo melhor. Para acender esse desejo, devemos alcançar aqueles que não conhecemos, aqueles que não necessariamente nos identificamos, e começar a conversar – não apenas sobre o quão ruins as coisas estão, mas em quão melhores poderiam estar.

[1] https://freedomnews.org.uk/2020/04/05/five-quick-thoughts-on-the-limits-of-covid-19-mutual-aid-groups-how-they-might-be-overcome/

[2] https://www.theguardian.com/commentisfree/2021/nov/24/left-mutual-aid-hyper-local-groups-pandemic-community

[3] https://gal-dem.com/weve-been-organising-like-this-since-day-why-we-must-remember-the-black-roots-of-mutual-aid-groups/

Fonte: https://freedomnews.org.uk/2021/12/19/lessons-of-the-covid-mutual-aid-projects/

Tradução > Sky

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Rubens Jardim