O símbolo em comum entre Direito romano, fascismo italiano e Justiça do Trabalho

Por Lucas Hendricus Andrade Van den Boomen

A Emenda Constitucional nº 24, de 9 de Dezembro de 1999, entre outras alterações, extinguiu a representação classista e as Juntas de Conciliação e Julgamento no âmbito da Justiça do Trabalho [1], após mais de meio século de existência dos referidos institutos criados na “era Vargas” (1930-1945). Com a extinção das antigas Juntas, instituíram-se as Varas do Trabalho. A nomenclatura “vara”, que se refere “à circunscrição em que o juiz exerce sua jurisdição” (Guimarães, 2016, p. 321) [2], já era amplamente utilizada na Justiça comum. A priori, a adoção desse termo pela Justiça especializada trabalhista foi fruto de mera adequação ao que já era usual em outros ramos do Poder Judiciário. Todavia, tal mudança terminológica carrega coincidências que se reportam às origens do Direito do Trabalho no Brasil.

Faz-se necessário iniciar o nosso percurso através de uma introdução histórica e etimológica. Para além do conceito jurídico, a palavra “vara” tem origem romana e ligação direta com um objeto/símbolo conhecido como fasces. É de reconhecimento geral a grande influência exercida pela cultura, os costumes e as instituições da Roma Antiga (753 a.C. – 476 d.C.) na história ocidental ao longo dos últimos dois milênios. Um dos símbolos romanos mais famosos, que inclusive sobreviveu à queda do império, é o já citado fasces.

O vocábulo latino fasces (ou fascio) designa um objeto utilizado em Roma, oriundo do período monárquico ou régio (753 a.C. — 509 a.C.). O referido objeto era constituído por um feixe de varas firmemente amarradas, usualmente de madeira de bétula, envoltas ao redor de uma machadinha (secures em latim) feita de metal. Tal instrumento era utilizado com o fito de abrir caminho para o rei, na época da realeza romana, e posteriormente para os magistrados, no período republicano (509 a.C. – 27 a.C.), bem como para executar penas capitais. Meira (1996, p. 41) explica que “as varas, utilizavam-nas para vergastar e a machadinha para cortar a cabeça às vítimas” [3]. Por conseguinte, o fasces era um símbolo do poder de punir do Estado romano, e, consequentemente, da aplicação da justiça pelos lictores.

O lictor era o empregado que acompanhava as autoridades romanas. Ao longo de vários séculos o poder de punir (ius puniendi), ou ao menos a execução das penas, ficou a cargo desses homens que dividiam as funções de guarda-costas e carrascos sob o comando dos magistrados dotados de imperium, ou seja, “o poder de coerção e aplicação de castigos físicos” (Meira, 1996, p. 40). O “cônsul” era um exemplo de magistrado romano dotado de imperium. Segundo Rolim (2008), “quando os cônsules saíam às ruas, iam acompanhados por doze lictores que carregavam o fasces (um feixe de varas significando união). Quando estavam fora da cidade de Roma, os lictores carregavam, além dos fasces, as denominadas secures (machadinhas), que significavam o poder de vida e morte sobre as demais pessoas” (Rolim, 2008, p.54) [4].

Tal tradição chegou até o Direito português. As Ordenações Filipinas (1603), que vigoraram até o surgimento do Código Civil de 1916, ainda previam a obrigatoriedade dos magistrados portarem o feixe de varas durante caminhadas pelas vilas da colônia brasileira no ultramar [5]. O fasces também foi adotado como importante símbolo republicano na França e nos Estados Unidos da América no período das revoluções burguesas.

Assim, o fasces foi convertido ao longo da história num símbolo da autoridade judicial e estatal, do poder de punir, da unidade e, notadamente, da aplicação da justiça até ser apropriado pelo movimento fascista na Itália, liderado por Benito Mussolini. A própria palavra “fascismo” tem origem nesse símbolo, que teve o seu significado original de justiça, união e autoridade, usurpado por uma ideologia extremista. É neste momento que conseguimos traçar a ligação entre as varas, o fasces e o Direito do Trabalho no Brasil, pois a Consolidação das Leis do Trabalho (1943) de Vargas foi inspirada na Carta del Lavoro (1927) de Mussolini [6], cujo regime adotava como símbolo máximo o famigerado feixe de varas. Por outro lado, a nomenclatura “vara” entendida como a unidade de jurisdição de um magistrado só foi adotada na Justiça do Trabalho ao final do século 20, por meio da EC nº 24/1999. Eis o exercício semântico: o vocábulo “vara”, que integra o símbolo fascista usurpado dos romanos, também denomina as sedes da Justiça trabalhista nas quais são exaradas as decisões judiciais. Seria essa uma coincidência ingrata? De qualquer forma, essa teia de conexões históricas liga de algum modo o Direito romano, a imagética fascista e a legislação trabalhista brasileira, através da mediação de um símbolo milenar. Essa foi a reflexão proporcionada por uma mera alteração do texto constitucional que trocou títulos na Justiça do Trabalho com vistas à adequação dos mesmos à padronização seguida no resto do Poder Judiciário brasileiro.

Apesar da coincidência, é óbvio que as Juntas de Conciliação e Julgamento, renomeadas como Varas do Trabalho, não vieram para enfeixar a machadinha fascista de Mussolini, e nem para vangloriar os feitos do velho caudilho, Getúlio Vargas. Quando foi publicada a Emenda Constitucional nº 24/1999, já haviam se passado 45 anos desde o suicídio do “pai dos pobres”. Não obstante, no pós-1988 as unidades de jurisdição trabalhista se transformaram no locus de concretização de importantes direitos sociais insculpidos na constituição cidadã. Além disso, o valor social do trabalho foi consagrado como fundamento da República Federativa do Brasil (artigo 1°, inciso IV). Por essas e outras, resta patente a necessidade de proteção dos direitos dos trabalhadores e dos reflexos de sua atividade laboral, nem que seja “debaixo de vara”.

Faz-se necessário iniciar o nosso percurso através de uma introdução histórica e etimológica. Para além do conceito jurídico, a palavra “vara” tem origem romana e ligação direta com um objeto/símbolo conhecido como fasces. É de reconhecimento geral a grande influência exercida pela cultura, os costumes e as instituições da Roma Antiga (753 a.C. – 476 d.C.) na história ocidental ao longo dos últimos dois milênios. Um dos símbolos romanos mais famosos, que inclusive sobreviveu à queda do império, é o já citado fasces.

O vocábulo latino fasces (ou fascio) designa um objeto utilizado em Roma, oriundo do período monárquico ou régio (753 a.C. — 509 a.C.). O referido objeto era constituído por um feixe de varas firmemente amarradas, usualmente de madeira de bétula, envoltas ao redor de uma machadinha (secures em latim) feita de metal. Tal instrumento era utilizado com o fito de abrir caminho para o rei, na época da realeza romana, e posteriormente para os magistrados, no período republicano (509 a.C. – 27 a.C.), bem como para executar penas capitais. Meira (1996, p. 41) explica que “as varas, utilizavam-nas para vergastar e a machadinha para cortar a cabeça às vítimas” [3]. Por conseguinte, o fasces era um símbolo do poder de punir do Estado romano, e, consequentemente, da aplicação da justiça pelos lictores.

O lictor era o empregado que acompanhava as autoridades romanas. Ao longo de vários séculos o poder de punir (ius puniendi), ou ao menos a execução das penas, ficou a cargo desses homens que dividiam as funções de guarda-costas e carrascos sob o comando dos magistrados dotados de imperium, ou seja, “o poder de coerção e aplicação de castigos físicos” (Meira, 1996, p. 40). O “cônsul” era um exemplo de magistrado romano dotado de imperium. Segundo Rolim (2008), “quando os cônsules saíam às ruas, iam acompanhados por doze lictores que carregavam o fasces (um feixe de varas significando união). Quando estavam fora da cidade de Roma, os lictores carregavam, além dos fasces, as denominadas secures (machadinhas), que significavam o poder de vida e morte sobre as demais pessoas” (Rolim, 2008, p.54) [4].

Tal tradição chegou até o Direito português. As Ordenações Filipinas (1603), que vigoraram até o surgimento do Código Civil de 1916, ainda previam a obrigatoriedade dos magistrados portarem o feixe de varas durante caminhadas pelas vilas da colônia brasileira no ultramar [5]. O fasces também foi adotado como importante símbolo republicano na França e nos Estados Unidos da América no período das revoluções burguesas.

Assim, o fasces foi convertido ao longo da história num símbolo da autoridade judicial e estatal, do poder de punir, da unidade e, notadamente, da aplicação da justiça até ser apropriado pelo movimento fascista na Itália, liderado por Benito Mussolini. A própria palavra “fascismo” tem origem nesse símbolo, que teve o seu significado original de justiça, união e autoridade, usurpado por uma ideologia extremista. É neste momento que conseguimos traçar a ligação entre as varas, o fasces e o Direito do Trabalho no Brasil, pois a Consolidação das Leis do Trabalho (1943) de Vargas foi inspirada na Carta del Lavoro (1927) de Mussolini [6], cujo regime adotava como símbolo máximo o famigerado feixe de varas. Por outro lado, a nomenclatura “vara” entendida como a unidade de jurisdição de um magistrado só foi adotada na Justiça do Trabalho ao final do século 20, por meio da EC nº 24/1999. Eis o exercício semântico: o vocábulo “vara”, que integra o símbolo fascista usurpado dos romanos, também denomina as sedes da Justiça trabalhista nas quais são exaradas as decisões judiciais. Seria essa uma coincidência ingrata? De qualquer forma, essa teia de conexões históricas liga de algum modo o Direito romano, a imagética fascista e a legislação trabalhista brasileira, através da mediação de um símbolo milenar. Essa foi a reflexão proporcionada por uma mera alteração do texto constitucional que trocou títulos na Justiça do Trabalho com vistas à adequação dos mesmos à padronização seguida no resto do Poder Judiciário brasileiro.

Apesar da coincidência, é óbvio que as Juntas de Conciliação e Julgamento, renomeadas como Varas do Trabalho, não vieram para enfeixar a machadinha fascista de Mussolini, e nem para vangloriar os feitos do velho caudilho, Getúlio Vargas. Quando foi publicada a Emenda Constitucional nº 24/1999, já haviam se passado 45 anos desde o suicídio do “pai dos pobres”. Não obstante, no pós-1988 as unidades de jurisdição trabalhista se transformaram no locus de concretização de importantes direitos sociais insculpidos na constituição cidadã. Além disso, o valor social do trabalho foi consagrado como fundamento da República Federativa do Brasil (artigo 1°, inciso IV). Por essas e outras, resta patente a necessidade de proteção dos direitos dos trabalhadores e dos reflexos de sua atividade laboral, nem que seja “debaixo de vara”.

[1] CHAVES, Luciano Athayde. A Emenda constitucional n. 24/99 e o processo do trabalho: mutações infraconstitucionais e ajustes conforme a constituição. Revista de informação legislativa, Brasília, v. 50, nº 197, 2013. Disponível em: < http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/496968 >. Acesso em: 20 fev. 2019.

[2] GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri. Dicionário Universitário Jurídico. 20. ed. São Paulo: Rideel, 2016.

[3] MEIRA, Silvio. Curso de direito romano. ed. fac-sim. São Paulo: LTr, 1996. 

[4] ROLIM, Luiz Antonio. Instituições de direito romano. 3. ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

[5] Ordenações Filipinas, livro I, título LXV, I. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/242733.

[6] Acreditamos que não se pode exagerar a real importância da influência italiana na CLT, tendo em vista que naquele período houve outras influências relevantes na confecção da legislação trabalhista brasileira, como o positivismo castilhista oriundo do Rio Grande do Sul, a doutrina social da igreja católica e até mesmo as ideias do jurista Pontes de Miranda. Desenvolvi esse tema em artigo também publicado no Consultor Jurídico: https://www.conjur.com.br/2021-jun-06/boomen-origens-clt-alem-fascismo-italiano.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2022-fev-19/opiniao-direito-romano-fascismo-italiano-justica-trabalho

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Carlos Seabra