[Indonésia] SEA Library: Construção do Conhecimento & Resistência no Sudeste Asiático

Por Matt Dagher-Margosian | 31/12/2021

Conversei com a Southeast Asia Anarchist Library [Biblioteca Anarquista do Sudeste Asiático, SEA Library] sobre como seu projeto teve início, sobre o Sudeste asiático e sobre como a organização deve ser local e global para construir um mundo melhor.

Magsalin: Gosto da ideia da The Anarchist Library (TAL) como um lugar para arquivar textos anarquistas que estão em risco de serem perdidos pelo tempo e negligência. De fato, perder-se [por esses motivos] é também um problema da literatura anarquista no Sudeste da Ásia, os textos estão perigosamente espalhados pela internet e por zines impressas seletivamente; sinto um certo horror no fato de que essa literatura permaneça obscura, ou pior, perdida com o tempo, então pedi aos bons bibliotecários da TAL por uma seção no Sudeste asiático no ano passado.

Geralmente, novas bibliotecas em outras línguas são apenas em uma língua — espanhol, francês, coreano, ou qualquer que seja. Isso faz sentido para grandes idiomas que abrangem países (como inglês, espanhol, francês), ou países com uma língua predominantemente homogênea (como a Coreia do Sul e coreano); contudo, o Sudeste asiático é caracterizado por uma diversidade incrível, com mais idiomas do que nações. Algumas línguas do Sudeste da Ásia têm apenas alguns textos anarquistas, então não há sentido econômico em ter várias bibliotecas menores com uma pequena quantidade de textos. Além disso, a diversidade de idiomas significa que um meio anarquista único em um país pode produzir textos em múltiplas línguas. Esse é o caso nas Filipinas, em que anarquistas filipinos escrevem em inglês, tagalo e Bisaya. Diferente de outras bibliotecas anarquistas, queria um lugar que consiga refletir a rica diversidade de idiomas do Sudeste asiático.

Desde o começo do projeto em janeiro, a SEA Library agora conta com centenas de textos em muitos idiomas. Também se tornou um local para traduções originais como em Tieng Vietname. Por exemplo, David Graeber (descanse em poder) agora tem traduções de suas obras em Tagalo, Bahasa indonésio/malaio, Tieng Vietname e tailandês. Estou muito satisfeito com o fato de que vários anarquistas da região utilizam a SEA Library como um local para preservar sua literatura e para enviar suas traduções originais.

Asia Art Tours: Para SEA Libraries, quais eventos históricos ou momentos catárticos do presente sombrio levaram vocês ao anarquismo?

Ringo: Há uma longa história sobre como finalmente decidi ser anarquista, mas o ponto principal são as experiências de vida do povo pobre, ler muitos livros e ver muitos atos hediondos cometidos por grupos fascistas, pelo Estado e pelo capitalismo. Encontrei todos os tipos de liberdade no anarquismo, como indivíduo queer e como pessoa pobre, encontrei um lar confortável.

Magsalin: Tive simpatias progressistas e então libertárias por um tempo, mas essas ideias não entraram no mundo do pensamento revolucionário até que me deparei com a violência estatal em um nível intensamente pessoal. Foi naquele momento que percebi que não pode haver reformas para a prisão e violência estatal, apenas sua abolição. Como um progressista, estava encantado com a descentralização e o socialismo libertário; estava particularmente fascinado com Rojava. De Rojava, encontrei Murray Bookchin, cujo trabalho se baseava na política de Rojava e, de Bookchin, encontrei Ursula K. Le Guin e seu livro The Dispossessed. Ler sobre anarquismo não foi suficiente para que eu me tornasse anarquista, as peças na minha cabeça só se encaixaram quando tive aquele momento de lucidez quando sob a violência do sistema prisional.

Asia Art Tours: Quais problemas os anarquistas no Sudeste da Ásia têm com nacionalistas?

Ringo: Na Indonésia, estamos enfrentando muitos problemas com a repressão. A começar pela sequência de medidas repressivas após a manifestação antimonárquica em Yogyakarta em 1º de maio de 2018 e motins em 2019 em várias cidades, e a prisão de alguns anarquistas por conta de provocações usando grafitagem em 2020, no ano passado. O anarquismo sempre foi bode expiatório, usado como um pretexto da polícia para reprimir muitas manifestações. Anarquistas na Indonésia ainda não são organizados e têm problemas com disciplina e apenas perdem tempo conversando e jogando na internet; ao mesmo tempo, grupos nacionalistas e conservadores religiosos têm se organizado e construído bases de apoio na comunidade. A forte repressão que vem quando o anarquismo brota, o que previne de ser capaz de se desenvolver adequadamente. Penso que uma situação similar também ocorre em países do Sudeste da Ásia.

Magsalin: Nas Filipinas, virtualmente todas as facções políticas são nacionalistas, do Partido Comunista aos partidos social-democratas, até os autoritários de extrema-direita: o nacionalismo permanece sem ser desafiado politicamente. Apenas alguns, incluindo os anarquistas, nas Filipinas articulam o anacionalismo, quem dirá questionar imperativos nacionalistas e suas implicações estadistas. Já os nacionalistas de direita, como aqueles que apoiam Duterte e o dutertismo, seu nacionalismo geralmente atrai nacionalistas de esquerda como o Partido Comunista e o Bloco Macabaiano, que chegaram à mesma conclusão de apoiar Duterte por orgulho nacionalista. Enquanto ambos os blocos oportunistas desmancharam seu apoio ao Duterte, continuam suscetíveis a populistas futuros enquanto continuarem a articular o nacionalismo.

Asia Art Tours: Como vocês veem o projeto SEA Library quanto à luta contra o nacionalismo de fora (tankies) e doméstico (nacionalistas internos)?

Ringo: A SEA Library pode mostrar aos tankies ocidentais que o anarquismo está presente e ativo em países de terceiro mundo. O anarquismo tem um histórico longo na luta por libertação de muitas partes do Sudeste asiático, não é como dizem, que anarquismo só existe na Europa e América do Norte. A SEA Library pode ser um armazém de ideias para a comunidade anarquista em preparo e organização. É claro, grupos nacionalistas são mais problemáticos que grupos online de comunistas ocidentais.

Magsalin: Vejo a SEA Library como um repositório, uma ferramenta para os radicais por toda a região do Sudeste asiático para articular posições libertárias, antipolíticas e antinacionalistas. Também há guias na SEA Library e na English library em como se organizar anarquicamente.

É claro que o Marxismo-Leninismo, depois do colapso da União Soviética, continua em retirada, salvo por alguns lugares em que continuam as guerras do povo, como nas Filipinas e na Índia. Foi apenas recentemente que o Marxismo-Leninismo começou um reagrupamento e montagem de novas campanhas. Sem um poder Marxista hegemônico (e não considero a People’s Republic of China um deles), não vejo tankies internacionais como uma ameaça. Nas Filipinas, contudo, o stalinismo persiste ainda como uma força hegemônica entre a esquerda filipina, eles usaram sua hegemonia para assassinar outros membros da esquerda, como os social-democratas e os Marxistas-Leninistas; neste ano, eles se responsabilizaram pelo assassinato de um organizador trabalhista. Mesmo que tenham se desculpado, não estou convencido que sejam uma força confiável.

Asia Art Tours: Globalmente, com o aumento da censura, autoritarismo e violência estatal, vocês veem na tradução uma forma de guiar e resguardar conhecimento de algum perigo? Face à violência do Estado, como a tradução de um anarquista tailandês para o português, de um anarquista cambojano para o armênio, ou de um anarquista indonésio para o inglês, permite que seu conhecimento e sabedoria sobreviva?

Ringo: Vejo a tradução e o arquivamento de textos como ação importante, tanto quanto outras ações como a organização de comunidades, jogar pedras em janelas de bancos, ou bater em estupradores em comunidades esquerdistas. O trabalho de tradução de um texto dissemina e permite a troca de conhecimentos em comunidades anarquistas de diferentes países […]. Esse trabalho também permite à comunidade anarquista do sul global aprender com o anarquismo ocidental, que são mais letrados por seu privilégio como países desenvolvidos, com melhor acesso à educação e à internet. Ou vice-versa, anarquistas ocidentais podem aprender com anarquistas do sul global que foram até então considerados inexistentes. (Embora na realidade os projetos com tendências anarquistas e antiautoritárias que tiveram mais sucesso foram em países não-ocidentais, como em Rojava, EZLN, Barbacha, Abahlali baseMjondolo etc.)

Vejo muitos anarquistas legais cujas obras não ganham popularidade porque é difícil encontrar traduções em inglês de seus textos, ou por não receberem atenção dos anarquistas ocidentais. Mencionaria, por exemplo, Sam Mbah, anarquistas japoneses como Kōtoku Shūsui, Kanno Sugako e Osugi Sakae, e muitos outros anarquistas asiáticos.

Magsalin: Trabalho de tradução sempre foi difícil, mas muito importante. Errico Malatesta, por exemplo, foi traduzido em dezenas de idiomas, incluindo tagalo, seu conhecimento e sabedoria levado a novos públicos e contextos. Com mais traduções também há novas articulações, interpretações e aplicações. Mesmo que traduções sejam demoradas e difíceis, espero que anarquistas do sudeste asiático se comprometam em fazê-las.

Asia Art Tours: Joy James é uma das vozes mais influentes que já encontrei sobre abolição e policiamento, mas não tenho ideia como seu trabalho (investigando radicais do movimento negro que foram contra o Estado-nação, como George Jackson ou Kathleen Cleaver) se ‘traduz’ quando lido no Sudeste da Ásia.

Quando falamos sobre tradução, a mudança de conteúdo/idioma da obra traduzida a faz menos efetiva para o novo público? Ou o ato de tradução é ‘anarquista’ ao tentar mover o conhecimento para além das fronteiras e encontrar pontos de solidariedade? Por exemplo, ACAB pode ser universalmente compreendido em ambos o Sudeste da Ásia e os Estados Unidos?

Ringo: Sim, na minha experiência traduzindo textos em inglês para Bahasa indonésio, encontrei alguma dificuldade para compreender o significado do texto; por exemplo, o contexto histórico, localização ou nomes de grupos. Às vezes há alguns bons textos de países ocidentais, mas não podem ser aplicados da mesma maneira por conta das diferentes condições no Sudeste asiático, então algumas vezes tradutores anarquistas explicam algumas partes difíceis ou pulam partes irrelevantes; por exemplo, na Indonésia, alguns textos do Bakunin sobre antiteísmo é deixado de lado porque não se encaixa na situação do país.

Magsalin: Traduções equivocadas são sempre um risco na tradução de textos. Famosamente, a querela entre Nestor Makhno e Errico Malatesta foi baseada em trabalhos de tradução ruins, e foi resolvida por meio de várias cartas descobrindo que tinham mais em comum que em desacordo. Apesar disso, penso que esses riscos são aceitáveis em troca de uma ampla disseminação dos textos. Em meu meio, vi tradutores mudarem alguns nomes de empresas de capitalistas notórios para equivalentes locais filipinos. David Graeber, por exemplo, falava um pouco de como pessoas se auto-organizam de maneira anárquica enquanto esperam o ônibus; em tagalo, o ônibus foi substituído pelos icônicos perueiros filipinos. Ou, em outro exemplo, All Cops Are Bad (ACAB) [todos os policiais são bastardos] se torna Ang Kapulisan Ay Berdugo (AKAB; “a polícia é o carrasco”). Penso que esses regionalismos ajudam; como diz um amigo, preserva-se o sentido, não a colocação.

Asia Art Tours: O que vocês recomendariam que diferentes públicos ‘dessem uma olhada’ em sua biblioteca para entender melhor o Anarquismo no Sudeste asiático?

Ringo: Acho que os textos “Anarchism in (insira o nome do país do Sudeste asiático aqui)” [por exemplo, anarquismo nas Filipinas] são bons começos para conhecer a história e o desenvolvimento do anarquismo em países do Sudeste da Ásia. Magsalin escreveu muitos textos incríveis sobre o anarquismo nas Filipinas. Recomendo textos antigos do Dominic Berger, que discutem sobre a nova onda de anarquismo insurrecional na Indonésia entre 2011 e 2013.

Magsalin: Temos uma seção inteira de textos introdutórios, e temos também uma seção sobre a história do anarquismo no Sudeste asiático. Quanto a textos específicos, curti muito o The Age of Globalization: Anarchists and the Anti-Colonial Imagination, do Benedict Anderson, que, entre outros assuntos, lida com as intersecções anarquistas do fim do século XIX e início do século XX nas Filipinas e na Indonésia.

Para os interessados e interessadas, aqui está o link da Southeast Asian Anarchist Library: https://sea.theanarchistlibrary.org/special/index

Fonte: https://asiaarttours.com/sea-library-knowledge-building-resistance-in-southeast-asia/

Tradução > Sky

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que flor é esta,
que perfuma assim
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Carlos Seabra