[Reino Unido] Entrevista | Ruth Kinna: “O anarquismo também evoluiu”

Freedom falou com Ruth Kinna, autora de inúmeros livros sobre o anarquismo, a respeito das origens e dos principais conceitos anarquistas. 

Pergunta > O que você acha mais atrativo no anarquismo?

Resposta < Eu gosto do ponto de partida. Anarquistas normalmente partem da crítica à injustiça e da suposição da imperfeição social. Eu diria que o projeto anarquista é identificar as barreiras institucionais que inibem grupos e indivíduos de iniciar mudanças, sabendo que qualquer medicação proposta vai levar a novas injustiças. Se compara à filosofia política tradicional, que tipicamente começa com uma ideia de justiça e se esforça para descobrir os arranjos sociais ou os movimentos capazes de realizá-la.

Gosto de como os anarquistas se expressam, o anarquismo de envergadura tem a expressão e a fé que os anarquistas colocam em cada um de nós para resolver nossas diferenças. Não acho que a fé seja ingênua: acho que muitas vezes é embasada pela apreciação da irracionalidade humana, do viés, do preconceito, do interesse próprio e da desconfiança.

Pergunta > Uma parte interessante da “crítica” do anarquismo é que ela não foca apenas no que está errado com a sociedade (capitalismo, instituições de governo, igreja, etc), mas também olha para a forma dos nossos movimentos e organizações. Você acha que o entendimento crítico da “hierarquia” é a principal linha divisória entre anarquistas e os outros na esquerda radical, especialmente Marxistas?

Resposta <Anarquistas se opuseram ao Marxismo por pelo menos três razões.

(i) Toda uma leva de anarquistas rejeitam a teoria da história porque ela parece ir ao ponto de um futuro industrializado distópico: modos de produção capitalista sobre uma nova propriedade. Ainda antes de Murray Bookchin avançar no argumento ecológico, anarquistas propuseram uma reorganização social e econômica no atacado. Isso incluiu o abandono da produção industrial e das divisões comerciais internacionais, mas não a rejeição do internacionalismo ou do intercâmbio global.

(ii) Anarquistas questionaram a análise de classes de Karl Marx. Isso não faz sentido com as atuais mudanças do capitalismo, pois ela priorizou as lutas trabalhistas em detrimento de outras formas de dominação, e assumiu que o Estado poderia ser entendido estritamente como um instrumento de regramento de classe. Anarquistas discordam. Ausência de classes não foi ausência de partidos. Significou monopólio partidário dos meios de violência, agora naturalizados porque não poderia haver exploração dos trabalhadores por seus representantes.

(iii) Vestido como ‘ciência’, o Marxismo também empoderou elites ao recomendar estratégia revolucionária e a política, militando contra a ação direta. A fala de Lenin sobre esmagar o Estado em 1917 pareceu um sinal de convergência entre o anarquismo e o Marxismo, mas a tese dependia da revisão do Marxismo e da reafirmação da primazia do partido como o órgão de democracia proletária apartidária.

A organização um foi dos pontos nevrálgicos na Primeira Internacional (1864-1871), quando Mikhail Bakunin e Marx espetacularmente separaram a organização. Bakunin e seus seguidores rejeitaram a proposta da executiva, sob influência de Marx, de que as sessões organizariam partidos políticos para tomar e participar de eleições nacionais e advogar a revolução socialista pela convulsão do poder governamental. Anarquistas tipicamente interpretam o comprometimento da Internacional com a auto-emancipação como uma rejeição à representação política, que se tornou a base para a rejeição à participação eleitoral e organização partidária – uma das maiores fendas dividindo anarquistas da maior parte da esquerda revolucionária.

Anarquistas também se opõem aos movimentos de Marx para centralizar o controle executivo da federação. A rejeição geral à tomada de decisão de cima para baixo, à hierarquia e à liderança tradicional subsequentemente se desenvolveram como parte de uma pauta antiautoritária mais ampla. Construir federações descentralizadas de baixo para cima usualmente envolve delegação. Até em associações e redes ‘horizontais’ costumam criar grupos de trabalho e conselhos com algum destaque. Existem desigualdades de poder formais e informais em organizações anarquistas. Mas em vez de aceitar o controle da elite (oligarquia) como uma característica necessária da organização ou acolher concentrações permanentes de poder, anarquistas argumentam que era possível evitar isso impedindo entrincheiramentos de poder. A quebra no potencial abuso de poder é a recusa de ceder autoridade permanentemente a qualquer órgão ou instituição da organização, permitindo permanente objeção.

A história ajuda a contextualizar discussões recentes de mudança pré-figurativa, a ideia de que a forma do futuro é determinada por ações do presente. Mas o ponto é que a discordância não é apenas sobre formas organizacionais ou hierarquia. A conclusão anarquista de que métodos ditatoriais de partidos de vanguarda e de eleição são as ferramentas erradas para o comunismo libertário vêm de uma significativa divergência na teoria socialista.

Pergunta > O anarquismo que em sua forma moderna, que apareceu em circunstâncias muito específicas do início do capitalismo, ainda pode ser relevante hoje em dia com tanta coisa tendo mudado?

Resposta <Alguns cientistas políticos americanos do início do Século XX explicaram o anarquismo como uma resposta compreensível e possivelmente ainda legítima à autocracia. Noticiando que várias das lideranças anarquistas eram russas (Bakunin, Peter Kropotkin, Leo Tolstoy), eles argumentaram que o anarquismo foi uma resposta ao Czarismo, e que o constitucionalismo liberal o fez redundante. O fato de o anarquismo ter se enraizado na América não foi apenas desconcertante desse ponto de vista, mas também ajudou a alimentar a criminalização do anarquismo. Anarquistas eram combatentes da liberdade no Leste repressivo, mas terroristas na terra da liberdade.

É verdade que o rótulo ganhou relevância pela primeira vez na Europa do final do Século XIX, mas eu gostaria de perguntar como ‘as circunstâncias do início do capitalismo’ deveriam ser entendidas, e por que esse enquadramento em vez do enquadramento liberal, é mais útil na avaliação da relevância duradoura da crítica anarquista? Não quero descartar completamente a análise materialista, mas sou cautelosa com a periodização histórica implícita (e concepções relacionadas de imperialismo ou fascismo como o ‘estágio final’ do capitalismo).

Muita coisa mudou desde 1840, quando Pierre-Joseph Proudhon publicou O que é a Propriedade?, mas o ‘prejuízo’ para o governo que Proudhon deu ainda está aí, e contando. A análise anarquista do Estado como um processo de colonização, de militarismo, patriotismo, que costuma ser chamado de ‘escravidão sexual’ – dominação circular – ainda é potente. O anarquismo também evoluiu – então há muito material disponível para pessoas interessadas em ecologia, educação, crime, política social, religião, culturas de consumo, democracia, trabalho.

Pergunta > Eu acho que parte do que inspirou essa questão é a série de excelentes textos que você tem produzido com a Dog Section Press sobre vários “Grandes Anarquistas”, compreensivelmente, com foco em figuras do Século XIX e início do Século XX. Estou interessado no porquê você está dedicada a assegurar que a contribuição desses indivíduos seja mantida viva nos dias de hoje.

Resposta <Essa é uma boa questão. Por que a história importa? A série é puro egoísmo da minha parte. Eu gosto de história, gosto de tentar trabalhar em como as gerações anteriores viram o mundo e o que eles estavam tentando dizer. Então chego a publicar com Clifford Harper e com a Dog Section Press. Eu acho que é ímpar pensar que um movimento que celebra uma mudança pré-figurativa não iria estar interessado no passado. Se você aceita que o futuro é moldado por o que você faz hoje, então certamente você também deve aceitar que o seu presente teve um passado e que isso deve enriquecer o entendimento deste presente.

Eu acho interessante que o estudante de movimentos da segunda metade dos anos 1960 reacendeu o interesse nos passados anarquistas. Anarquistas pró-feministas, especialmente, começaram a recuperar histórias perdidas. Por exemplo, Marian Leighton publicou um trabalho sobre Louise Michel e Voltairine de Cleyre. As tendências anarquistas provenientes dos movimentos por justiça social no final dos anos 1990 tenderam à direção oposta. Histórias anarquistas foram vistas com muito menos simpatia. O passado foi sobre anarquistas com A maiúsculo, e isso foi muitas vezes lido através de uma lente anti-canônica ou Marxista. Anarquistas históricos emergiram como homens brancos barbudos, lutadores de classe antiautoritários que endossavam a ciência determinística, apreciavam a perspectiva de revolução violenta, tinham visões fantásticas e rosadas da natureza humana, e ideias rigidamente utópicas do anarquismo. Essa é uma caricatura extremamente distorcida.

Não quero tentar achar ‘lições’ no trabalho de nenhum dos anarquistas na série. Eu tento destacar conceitos ou questões que, na minha mente, continuam a ressonar, ou que tem sido negligenciadas indevidamente: livre associação, ‘ciência’, propaganda, democracia, obediência e assim por diante. Acho que é útil discutir como os primeiros anarquistas abordaram essas ideias ou problemas, particularmente desde que suas abordagens frequentemente voam na cara das convenções estabelecidas. Se nós queremos construir alternativas, não precisamos reinventar a roda ou depender das estruturas que são antipáticas às formas anarquistas de pensamento. Nós podemos usar a história.

Pergunta > O apoio mútuo é frequentemente visto como um dos principais pilares do anarquismo. Como este conceito pode ser resumido?

Resposta <Meu entendimento vem desde Kropotkin e eu leio a ideia dele como uma ética de dar sem expectativa de retorno ou recompensa. Apoio mútuo é diferente de um contrato onde as partes opostas barganham, e que refletem o relativo poder de vantagem de cada uma delas. Não é uma obrigação porque atos de apoio mútuo são guiados por impulso e não por dever. A segunda ideia de Kropotkin é que o apoio mútuo pode ser encorajado ou inibido por formas de organização social que nós adotamos. O apoio mútuo depende de cooperação. É ‘natural’ no sentido de que somos criaturas sociais e interdependentes: nosso bem-estar depende da nossa habilidade de cooperar uns com os outros. Mas cooperação é ‘cultivada’, também, no sentido de que nossa interdependência pode ser mais ou menos constrangida ou apreciada. O argumento de Kropotkin é que podemos realizar a ética do apoio mútuo e estabelecer relações de convívio se nos organizarmos para ganhar confiança. O comando enfraquece o apoio mútuo porque sob comando a cooperação depende do medo de punição. A desigualdade enfraquece o apoio mútuo também, porque cria divisões sociais, rivalidade e competição. O apoio mútuo funciona melhor onde há livre associação. Isso significa que os indivíduos são capazes de decidir de que projetos sociais ou coletivos eles querem participar, e que eles podem ter apoio dos outros, sabendo que esses arranjos não são forçados por lei.

Pergunta > Uma das frases que você usou no seu livro recente The Governement of No One que eu gostei muito foi a ideia de anarquizar relações existentes e estruturas em vez de ver o anarquismo como um jogo de soma-de-zeros em que ou você derruba tudo ou é tudo em vão. Eu adoraria se você pudesse expandir isso um pouco.

Resposta <A ideia de anarquizar é emprestada de Émile Armand – um anarquista individualista e notável advogado do amor livre. Isso me agrada porque eu penso que desvia da familiar dicotomia entre ‘revolução’ e ‘reforma’. Rejeita a ideia de soma-zero e deixa a determinação dos meios de mudança abertos.

A ideia de Armand foi que todas as instituições e relações poderiam ser anarquizadas do mesmo modo que poderiam ser liberalizadas. A diferença seria que liberalizá-las seria tipicamente resultado de uma expansão ou reconhecimento de direitos, deixando as estruturas de poder e micro expressões de poder intactas, enquanto anarquizá-las envolve desafiar os princípios prevalentes de autoridade, sistemas de dominação e trincheiras de poder. Eu gosto disso porque acho que ajuda a fazer enormes problemas parecerem mais tangíveis. Por exemplo, se eu achei difícil contemplar o que a abolição do capitalismo ou do Estado envolve, posso começar a pensar sobre a anarquização do consumo, do transporte, da saúde ou da educação. O apoio mútuo é uma grande parte disso, no que afirma alguns princípios básicos para reconstruir as relações sociais. Mas anarquizar enfatiza bem como as dimensões ambientais do conceito de Kropotkin devem estar alinhados ao construtivo desmantelamento das instituições e práticas exploradoras.

Entrevista feita por Jim Jepps

Fonte: https://freedomnews.org.uk/interview-ruth-kinna/

Tradução > Sid Sobral

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